Hoje me pus a fazer coisas das quais a solidão gosta. Entre uma e outra, eu escolhi organizar meu escritório, triar papéis, movimentar alguns livros, liberar espaço, por o que eu posso no lugar. É um tanto cansativo, mas sempre uma atividade surpreendente por uma ou outra razão. Hoje, a melhor surpresa foi encontrar um livro editado pela Fundação José Saramago, que adquiri quando lá estive há um ano atrás: Discursos de Estocolmo, do próprio Saramago. O livro é uma brochura curta… tão curta quanto pungente, que reúne dois discursos de Saramago pronunciados ao receber a distinção do Prêmio Nobel de Literatura 1998. Naquele ano, a Declaração Universal de Direitos Humanos completava seu jubileu de ouro. Foi nesta toada que Saramago compartilhou com o público algumas de suas inquietações como ser humano e como um cidadão de distinta consciência política. Não o faria diferente ao ter um microfone a centímetros de sua voz. Nem eu perderia esta oportunidade hoje de replicar trechos deste discurso que traduz, vinte anos depois, a triste realidade de nossos dias. Nada mudou para melhor. Na verdade, são flagrantes as evidências de que retrocedemos. Então, aí vai um tanto de Saramago para espelhar o que vivemos.

“Majestades, Alteza Real, Senhoras e Senhores,
Cumpriram-se hoje exactamente cinquenta anos sobre a assinatura da Declaração Universal de Direitos Humanos. Não têm faltado, felizmente, comemorações à efeméride. Sabendo-se, porém, com que rapidez e atenção se fatiga quando as circunstâncias lhe impõem que se aplique ao exame de questões sérias, não é arriscado prever que o interesse público por esta comece a diminuir a partir de amanhã. Claro que nada tenho contra actos comemorativos, eu próprio contribuí para eles, modestamente, com algumas palavras. E uma vez que a data o pede e a ocasião não o desaconselha, permita-se-me que pronuncie aqui umas quantas palavras mais.
Como declaração de princípios que é, a Declaração Universal de Direitos Humanos não cria obrigações legais aos Estados, salvo se as respectivas Constituições estabelecem que os direitos fundamentais e as liberdades nelas reconhecidos serão interpretados de acordo com a Declaração. Todos sabemos, porém, que esse reconhecimento formal pode acabar por ser desvirtuado ou mesmo denegado na acção política, na gestão económica e na realidade social. A Declaração Universal é geralmente considerada pelos poderes económicos e pelos poderes políticos, mesmo quando presumem de democráticos, como um documento cuja importância não vai muito além do grau de boa consciência que lhes proporcione.
Nestes cinquenta anos não parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força de lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade que é capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição de suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte neste tempo do que ao nosso próprio semelhante.
Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os Governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não querem. Ou porque não lho permitem os que efectivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal de democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. Foi-nos proposta uma Declaração Universal de Direitos Humanos, e com isso julgámos ter tudo, sem repararmos que nenhuns direitos poderão subsistir sem a simetria dos deveres que lhes correspondem, o primeiro dos quais será exigir que esses direitos sejam não só reconhecidos, mas também respeitados e satisfeitos. Não é de esperar que os Governos façam nos próximos cinquenta anos o que não fizeram nestes que comemoramos. Tomemos então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa começar a tornar-se um pouco melhor[…].” (páginas 21 e 22)