E se eu me encaixotasse?
Com aquele símbolo de “frágil” por todos os lados, alertando para um manuseio cuidadoso…?
Eu seria poupada de tantos solavancos fazendo rachaduras em mim?
E se eu me prendesse num bordado floral repleto de cores, arrematando-me bem para não cair jamais?
Talvez me diluir em aquarela me resolva a dor de existir num mundo de tantas agressões.
Autor: Grace Cristina Ferreira-Donati
Mundo nosso, nosso orgulho
O mundo não tem mais graça.
Não tem mais segredo
Não tem mais silêncio
Não tem mais respeito.
É só um entojado enjoado embolado
De canibais e vermes.
O que não é, é espaço vazio
Que flui pelas intermitências e foge de si mesmo
Com medo de se ver no resto
E de aumentar a massa que só fermenta e cresce.
O mundo já é completamente sem graça.
É aquela festa de gente bêbada tombada ao chão.
Desistente.
É o cheiro da mata queimada.
O crime anistiado.
A vida alheia tomada em comentário prosaico
Pra não se falar de si.
Da sua própria e íntima sujeira.
O mundo não tem nada de graça.
Tudo custa a alma pra quem tem
A escassez de quem não se tem.
Esse nada apático e inválido.
Custa o olho da cara.
Custa o tempo da poesia que eu não faço
E daquela música que me é honesta.
O mundo não tem graça nem é sério.
É o descaso curtindo a desgraça.
É a cada dia um despautério.

Sobre a arte de perder
Eu nada tenho a dizer além disso.
Sensação de sonho
Foi devagar que eu cheguei. Abri o portão. Um passo e depois outro… mais um, mais alguns. Daí eu estava lá de pé, falando e falando e falando sobre o caminho. Feliz por ele. Mas, cá dentro, sem querer, eu me projetava sentada naquelas cadeiras, no lugar deles, ouvindo outra pessoa. Lembrava do sonho que eu nem sabia que tinha até quase ontem. Ah… é de cada coisa que a gente é feita…
O Estatuto do Homem, de Thiago de Mello
Artigo Primeiro
Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo Segundo
Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo Terceiro
Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo Quarto
Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo único
O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.
Artigo Quinto
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.
Artigo Sexto
Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.
Artigo Sétimo
Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.
Artigo Oitavo
Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.
Artigo Nono
Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo Décimo
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único
Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.
Artigo Décimo Primeiro
Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais compra o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.
Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso e das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.
(Santiago do Chile, abril de 1964 dedicado a Carlos Heitor Cony)
Em homenagem à obra desse poeta tão singular.
Embora
Pra frente
Em frente
Caminhando devagar
E tanto
Pra sempre
Que se olha agora
Pra frente
E sem olhar pra trás
Com a luz em mente
Nem que se ressente
É pra sempre agora
E é pra frente que se anda
E se vai embora
E se apaga
O que se desenhou atrás
Olhos altos naquela luz da estrela
Pedindo intenso a proteção da Aurora
Mesmo que chora
Caminha os passos para frente agora
O que passou
Se esquece em outra hora
É pra sempre que se vai embora.
Segredada
O que fizeste com tua voz fraca?
Segredada no peito
Selada e vermelha
Sem qualquer efeito...
Com que ânimo arrancou a palavra
Do perfeito esconderijo
E a pendurou enfeitando
A mudez?
A elegância de só ouvir
E nada falar
A identidade inviolável
Quieta e oprimida
De viver sem ar.

Sozinha
Viver sozinha
É algo que não se resolve.
Porque é sozinha que caminha uma mulher na saga de ser mulher na vida.
Numa fase ainda de alguma esperança por companhia e comunhão
Ela acredita que mãos dadas podem sanar a carência, dar presença e completude… parceria no caminho…
Mas não.
Um alguém perto é tão somente alguém perto
Que perdido em meio a carências próprias, perde-se sozinho também.
É preciso espalhar lá dentro um tanto de sementes novas
Para ver brotar o belo no cenário da solidão.
E ser feliz assim, encoberta e protegida por este pequeno mundo secreto de si mesma.
Com cores e luz
Com flores e cada camada de si mesma
Da menina, da jovem criando sina, da mulher arrependida e quebrada.
Estar só é condição de ser gente.
Sozinha desde, profundamente e para sempre
É o lugar de ser mulher nessa vida.
Cores de tocar
Se mesmo vendo, buscando reparar… não basta aos olhos a luz… ponha-se cor ao toque, com maciez e volume acariciando o coração.

Marcílio
Agora ele vive na memória
Não mais nas manias repetidas
Não mais no silêncio compartilhado
Não mais no chamado pela menina.
Agora ele descansa eterno
Não mais na cama ou no leito
Não mais em fuga ou com medo
Não mais pedindo sossego.
Agora ele está só por ele
Não mais pelos peixes ou pássaros
Não mais pela lida e a esposa amada
Não mais pelos filhos ou qualquer outro laço.
Agora ele é aquela estrela que ilumina
A que no alto da noite mais brilha
Que vive em nós e por onde for
Que cuida, indica, ampara e vigia.
Em homenagem ao meu sogro, homem de caráter forte, honesto, generoso e benevolente que deixou esta existência no dia 23 de outubro.