Quase

Eu quase compreendo a tristeza de quem chora
E quase sinto a dor da ferida
E ouço a lamúria das esquinas
E quase escorre em mim a lágrima daquela menina.

Eu quase morro a morte da Aurora
E quase revivo o riso e a voz
Por pouco não toco em mim a saudade de mil sóis
E quase embalo a saudade daquele colo… de nós.

Permita-se a dor

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Há tempos tenho refletido sobre a cultura da felicidade que percorre nossas ruas, põe em nossas gargantas uma válvula que impede o extravasamento da dor e em nossa face, o brilho opaco do sorriso planejado. O resultado é um caos interno que nos desorganiza e irrompe em males perversos.
Já é possível classificar o comportamento como um ato reflexo, habilidade instalada precocemente e repetida, repetida e generalizada, consistentemente automatizada. Há um acordo tácito e amargo assumido entre quem sofre a dor e quem a assiste gritar. De um lado, a pessoa se lança a uma exagerada busca de controle e de outro, todo o entorno se mobiliza para que este plano tenha sucesso, e que, sendo assim, a dor desapareça, rápida e silenciosamente. O incoerente neste contexto é que dores não desaparecem assim… ao sabor do gosto de alguém, ou para se manter intacto o cenário da cozinha iluminada com cheiro de pão quente e margarina. É da natureza da dor doer. É um benefício biológico sentir a dor, expressá-la e buscar amparo. Dores não desaparecem assim… A criança que corta o pé sente dor. O menino que cai da bicicleta sente dor. A adolescente magoada pela amiga sente dor. O velho que perde sua esposa sente dor. Dói nascer. Dói crescer. Dói perder e… talvez doa morrer. A cada um cabe a sua dor e a todos nós cabe o respeito, o abraço longo, o peito voluntário, o colo ao lamento. Não cabe a quem assiste a dor sufocá-la, calar o grito ou estancar sua vida. Não nos cabe exigir a força que se esvai ou subestimar a ferida. Porque a cada um de nós cabe um tanto de dor, e a todos nós cabe, irrestritamente, o amor.

Por mais sensibilidade e menos anestesia

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Há alguns anos, um dos meus interesses no exercício profissional tem sido o treino de habilidades sociais e comunicação social junto a pessoas que vivem na especial sintonia do espectro do autismo. Via de regra, carecem de suporte adequado para desenvolver suas competências neste campo e, assim, interagir melhor socialmente. Vivendo inúmeras situações, nas quais aprendi, apliquei e desenvolvi alguns procedimentos nesta esfera, fui guiada pelo caminho do que chamamos de empatia. Para ser breve ao introduzir sua definição, utilizarei a frase curta que repetimos aos pais quando iniciamos um trabalho como este: “Empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro”. Este fenômeno psicológico que nos valida como homens de boa vontade nasce pelo reconhecimento e a percepção que temos do outro, daquele que não está em nós, que constitui outro eu e se apresenta como um semelhante. Nos dias que findaram a semana, fui eu mesma, sem cenas montadas ou estratégias traçadas, aquele alguém que sente dor e sofre. Alguém a se destinar empatia, portanto. Senti em minha própria pele o conforto de recebê-la e a tristeza de vê-la, sem cerimônia, ausente. Em um sopro de razão, em meio a tanto sentir, me pus a refletir o quão rasa pode ser nossa dedicação a um semelhante e o quão negligentes podemos estar sendo ao educar e formar pessoas. Por isso, desejando ser cuidadosa ao tocar nos limites do conceito, dedicarei mais tempo e palavras, talvez mais mergulho e sensibilidade do que apenas a definição curta que repito (ou repetia) no tempo curto do cotidiano. Empatia, pelo coração de João Doederlein, é “saber ler o roteiro de outra vida, é ser ator em outro palco, é compreender. É descer ao fundo do poço de alguém, sentar-se e fazer-lhe companhia”. É saber abraçar a alma do outro, sem dedicar-lhe preconceito de posição ou status, proximidade ou aparência. É deixar-se um pouco em repouso e esquecimento, e entregar-se a respirar a respiração de alguém. Empatia é calçar os sapatos do seu semelhante para compreender e sentir o seu caminho. É arrepiar-se com o frio que ele sente. E transpirar com a alegria veraneada que lhe alegra a alma. É fazer-se braço ao abraço e escuta à palavra. É estar e ladear, apoiar e sustentar. Empatia é mais que o olhar benevolente, é permitir-se a dor ou a alegria que o outro sente, não por ele, mas junto a ele, em comunhão de vida.

Nota: Explorada a significação de “empatia”, estabelece-se por antônimo, “anestesia”.