Último dia

Hoje foi um dia morno, daqueles que nada acontece, sem graça… que talvez por isso mesmo tenha sido um dia bom, um dia com saúde e em paz, junto aos meus. Um dia ótimo se eu me lembrar do dia difícil que deve ter tido quem sofre tantas agruras e angústias, moléstia, violência ou um coração quebrado. Mas o que agita meus pensamentos neste fim de dia é como eu vou encará-lo quando eu tiver pra mim só um dia a mais. Nenhum a mais para desperdiçar com mesmices ou nada a fazer. A lembrança de hoje ou de outro dia parecido em vazio deverá pesar no meu peito um dia, mesmo que nas horas de agora ele tenha sido só um dia e nada demais.

De Eduardo Bustos Segovia (EUA), técnica mista. Fonte: https://pin.it/7FJjMqK

E se as tristezas forem mais do que as levezas…?

Não há dia que se faça somente de choro, ou só de riso, só de dentes aparecendo à toa, sabe? Ou só de coração batendo apertado e respiração curta, miúda e seca… Não há dia construído só disso ou só daquilo. Cada dia tem em si muitos dias que talvez não sejam… e outros tantos que certamente serão. Um dia é uma entidade bipolar por natureza. Tem dia que é pura noite, dia que nem se sente a noite, dia que se encomprida e pula a noite até ser dia de novo. Há dias em que levezas, adornadas de muitas e sutis belezas, fazem sorrir em segredo a alma e dançar a música que cadencia nossa voz. Mas tem dias… outros dias, em que tristezas são mais que as levezas. Daí, é de se pegar o dia claro que poderia ser e fazê-lo livre, viver.

Viver é muito, muito difícil

Há cerca de três meses eu fiz o download de um aplicativo que auxilia o registro de humor associado a diferentes atividades, sendo ambos os menus customizáveis, “humor” e “atividades”. Comecei a usá-lo porque vinha notando muitas oscilações de humor e quis fazer uma análise melhor a partir de registros mais detalhados, padronizados e frequentes. Bem, ocorre que aos poucos, fazer o tal do registro foi se tornando maçante, chato e altamente desmotivador porque o vazio da vida foi se escancarando com uma força brutal. Os gráficos iam mostrando oscilações ou então uma linha uniforme entre os dias que, pra dizer a verdade, não faziam nenhum sentido, de forma prática. Nem a oscilação me agradava, tampouco a linha uniforme, reta de dias típicos e normais. Daí, eu parei de registrar no aplicativo. Mas que doce ilusão a minha… eu continuei registrando minha vida do mesmo jeito e então, com muito mais consciência do que antes. E talvez essa seja a causa do meu estado desinquieto, desconfortável, esdrúxulo até. As oscilações entre euforia e forte desmotivação me exaurem, do mesmo jeito que a neutralidade… aquela linha reta e fluida me diz que a vida é besta mesmo… uma mesmice, um suceder de nadas e uma ausência de sentido. Tenho sentido que tudo cansa. As interações humanas cansam, ouvir o outro cansa, falar de mim cansa, ter que explicar porque alguém não entendeu cansa, ficar feliz cansa porque é fato que vai durar pouco e daí cansa ter que deixar de ficar feliz e ficar triste ou sei lá o que. Cansa ter que lidar com o que não dá certo, cansa a frustração. Cansa tanto falar e tanto explicar. Cansa ainda mais o desejo. Ah… como desejar cansa. O desejo é um senhor muito, muito rígido, de cara fechada, de cinta em punho e que escraviza minhas ações. Daí quando eu faço o que eu desejo, me desinquieto porque eu acho ridículo precisar disso pra ficar feliz… porque nunca sei o que me domina, a quem eu sirvo e isso cansa… até porque sei que vai durar pouco e cansa mudar de emoção de novo e de novo e de novo. Cansa ser terapeuta quando eu só quero ser gente mesmo, cansa o olhar do outro sobre mim, cansa as expectativas, cansa a saudade que eu tenho de gente que punha em paz. Cansa essa “vida besta, meu Deus”. Cansa, cansa muito ser quem eu sou, esse jeito cansado de ser.

Voa

Ao meu amigo André Marques

Voa, pássaro, voa largo
Voa sem medo de voar
Voa sem pressa de chegar
Onde o pouso te espera e te recompensa

Voa, pássaro, toma o céu
Fisga-te da inércia das paragens
Emula-te pela generosa viagem
Que te compraz e te compadece

Voa, pássaro, voa largo
Voa sem medo de voar
Mergulha grande até fugidio, alcançar
Asa amiga, galho farto, azul de mar.

Obra de André Marques, lápis sobre papel de pass-par-tout, 2019

Poemas Inconjuntos, de Alberto Caeiro (1913-1915)

Alberto Caeiro exaltou a simplicidade, os milagres que se revelam no anonimato do suceder dos dias… a rosa se abrindo, o sol se pondo, a gota caindo da folha. Neste poema, a mensagem é atualíssima, fazendo-nos refletir sobre este sentimento perene de insatisfação e da necessidade patológica de ser feliz o tempo todo e a qualquer custo. Pela liberdade de sentir o que houver para sentir: Poemas Inconjuntos!

Falas de civilização, e de não dever ser,
Ou de não dever ser assim.
Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,
Com as coisas humanas postas desta maneira.
Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.
Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.
Escuto sem te ouvir.
Para que te quereria ouvir?
Ouvindo-te nada ficaria sabendo.
Se as coisas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.
Se as coisas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.
Ai de ti e de todos que levam a vida
A querer inventar a máquina de fazer felicidade!

“20 de julho de 2018” ou “Atrasados e Cancelados”

821346FF-FC95-4E30-A872-CF30EFD569A3De lá pra cá, de cá pra lá, as pessoas todas se agitavam para viver o que estava planejado em suas cabeças. Fosse a vida tão pragmática assim e a paz teria reinado no aeroporto de Congonhas naquela sexta-feira, 20 de julho. Mas, sabemos, não é assim que a vida é. “Tudo muda o tempo todo no mundo”… e naquele dia, tudo mudou naquele aeroporto mais do que de costume.

Na manhã do dia 20 de julho de 2018, ocorreu uma falha no radar do aeroporto de Congonhas, o que provocou a suspensão de vôos, afetando a tráfego aéreo em muitas regiões do Brasil. Enquanto nem imaginávamos o que estava acontecendo, o dia se preparava com situações inusitadas, incertezas e frustrações. 

Com meus pezinhos em segunda posição e um sorriso no rosto, estanquei ao ver a fila de embarque organizada no portão 16, e avaliei se ainda cabia um tímido desjejum naqueles poucos minutos que me restavam. Foi então que a voz no auto-falante anunciou que o vôo 3244 para Joinville estava atrasado. A informação era de que o aeroporto de Joinville estava fechado para pousos e decolagens devido a condições climáticas desfavoráveis. Tomada pelo espírito aguerrido da bailarina, pensei logo “posso saltar de para-quedas, amor. Quem precisa pousar em Joinville, se é flutuando mesmo que eu planejei estar lá?” E ri sozinha, claro, como faço quando penso estes pensamentos malucos.

Enquanto eu aguardava a Juliana e a Amandinha, “as duas outras bailarinas do trio em sua mais nova formação”, tomei um café, comi um pão de queijo e, com tranquilidade lidei com a situação com um quase desdém, como se daí a vinte minutos a fila de embarque fosse se construir novamente para ganharmos o nosso destino. 

Só que não foi assim que a coisa toda se deu. Ao final dos vinte minutos, o vôo foi cancelado, empurrando todos para a recuperação da bagagem despachada, na área de desembarque. Nós nos olhamos incrédulas, mas esperançosas e animadas de que o contratempo acrescentaria um tanto de emoção e só!  

Bom… daí por diante, durante as trinta horas seguintes foi uma avalanche de frustrações e situações divertidíssimas, alternando-se numa queda de braços interessante.

Depois do primeiro cancelamento, teve o segundo, depois o terceiro e então mais um e mais um e mais outro. E com a sucessão interminável de atrasos e cancelamentos, painel de vôos desatualizado, totens inoperantes, funcionários raros e completamente perdidos e outros vôos que misteriosamente decolavam… instalou-se o caos.

Com as malas em mãos, retornamos ao check-in e fomos incluídas no vôo 3164, das 13h20. Sem malas de novo, iniciamos uma rotina de passatempo com comidinhas e conjecturas, sessão desabafo enquanto a Amanda dormia sobre a mesa, andanças pelas lojas do aeroporto… experimentamos isto e aquilo, e nos divertimos planejando fotos e os nossos dois dias no Festival de Dança de Joinville. Entusiasmo recuperado, refizemos a rotina de embarque.    

Ah… mas este vôo também foi cancelado. A esta altura, Congonhas tinha fila demais e assentos de menos. As pessoas se amontoavam até em fila que surgia como um atalho para atingir outra fila e chegar antes em algum lugar. Tinha fila que não levava a lugar nenhum. Os monitores de vôo registravam informações antigas e que nem tinham se concretizado.

Comidinhas, esperança, risos nervosos, piadas, trombadas daqui e dali… e nessas horas a gente ainda faz novos melhores amigos porque, como a Ju disse para a senhora que vivia o auge de uma crise nervosa, “a gente tá tudo no mesmo barco…”.

Estupefatas, ouvimos o que temíamos: o cancelamento de mais este vôo, às 15h10. Iniciamos, com isso, a saga da recuperação de bagagens e por este motivo, cruzamos com o Thales e a amiga que estavam indo dançar no Festival e conhecemos o Zezinho que tinha despachado o celular na bagagem e estava tentando ir a Jaguariúna (esta história eu conto outra hora). De quebra, ainda demos duas entrevistas!

Heroicamente, conseguimos deixar o aeroporto com nossas malas e as passagens remarcadas, por volta das 18h30. Isto, depois de muita caminhada e escada, tentativa de sedução da funcionária do embarque e planos mirabolantes de invasão de algum vôo, para convencer o piloto a alterar a rota (sabe-se lá porque aquele vôo pra Brasília saiu, por exemplo…). A esta altura já tínhamos uma peça processual prontinha contra a operadora aérea, usando nossos parcos conhecimentos de Direito. Argumentação daqui, paralelos com outros insucessos dali, consultas pelo WhatsApp… e nos despedimos até a manhã do que seria nosso último esforço.

Sim, às cinco horas do dia seguinte estávamos no aeroporto para viver nossa quarta tentativa de embarque para Joinville. Reencontramos parceiros de frustrações, novos amigos de horas difíceis, como o Michel, e tentamos reorganizar a fila do check-in porque os funcionários já haviam desistido há tempos. Com estratégias em duas frentes, conseguimos ser atendidas pela Karine, atendente Latam do check-in, que nos dedicou a atenção devida.

Finalmente, estávamos a poucos minutos da aeronave! O check-in da Juliana e da Amandinha foi feito, mas, para a nossa surpresa… o meu não. Até agora, não pudemos entender o que houve… assim como a Karine, que também não compreendeu, acreditem! Ela até tentou incluir outro passageiro, considerando a hipótese de haver algo errado com o meu voucher, mas não conseguiu. Foi deste jeito que o sonho de Joinville deste ano ruiu pra mim. E foi deste jeito, que a Ju e a Amanda foram a Joinville. Com lágrimas, coração confuso e uma sensação de incompletude, desajuste.

Não posso imaginar quantas histórias tiveram o rumo alterado naquele dia. Quantas mudanças e imprevistos… Mas qual será que era o rumo certo para cada um de nós, não é? Haverá mesmo esta dualidade inocente entre erro e acerto? Será que somente a rota planejada nos leva ao melhor destino?

Eu não fui a Joinville, mas estive em muitos outros lugares nestes dois dias de Aeroporto de Congonhas. E Ju, que bom que foi com você!

Amanhã, eu tento de novo

Amanhã, eu tento de novo
Parar o tempo
Colorir o sossego pincelando a angústia de existir
Escolhendo as palavras para por luz no que escurece a emoção.

Amanhã, eu tento de novo
Organizar, por no lugar o que andou por aí sem rumo
Pagar as dívidas e curar as feridas
Preparar dias com mais primor.

Amanhã, eu tento de novo
Cumprir as promessas, ouvir canções de seresta que apaziguam o coração.
Tento ler os versos dos mestres
Comprar presentes e os venenos úteis
Jogar o acúmulo, o lixo futuro.

Amanhã, eu tento de novo
Agendar dias de só delícias
Aprumar e rezar
Registrar a ciência
Dormir o sono da paciência
Bebericar chá e pensar
Brincar de imaginar.

Amanhã, eu tento de novo e de novo
Cuidar do meu cuidar
Ouvir canção de Oswaldo
Esticar o corpo flácido
Respirar o ar sem par
Tento comprar o necessário
Declamar fora de horário
Esvaziar meu carro.

Amanhã, eu tento de novo
Virar uma só sendo dez
Ser multidão de uma vez
Delegar a criança fácil
Acender a vela
Aguar a planta
Ser pequena e tanta.

Urgência

Se eu soubesse que não te veria mais
Eu teria esgotado minha voz dizendo que te amo
Teria feito de cada bobagem dita uma poesia de beleza infinita
Para acalentar agora esta dor no meu peito sem limite.

Eu teria refeito minha fé e criado coragem
Para conseguir teu perdão à minha ausência
Teria chorado com você a lágrima que eu sempre escondi
Teria quebrado o relógio das minhas urgências.

Ah… se eu soubesse que não te veria mais
Eu teria pacientemente ouvido o que nunca se deixava dizer
Teria estado ao teu lado e com você, sofrido
Toda a massa de dor dos dias penosos do fim.

Se eu soubesse que não te teria mais
E que jamais teu sorriso me poria a sorrir
Eu teria clamado mais por sua vida
Por uma nova sina, outro amanhã de menina.

Janeiro em dezembro

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Leva aquela calma de ontem para amanhã
O riso do menino para o homem
A luz natalina para este peito em cisma.

Pega o vigor de nascer e põe no que convalesce
O êxtase em chama na prece
A vitória antiga na iniciada lida.

Carrega no agora o amor de outrora
A criança vibrante na mulher sem cor
A esperança do antes no depois errante.

Leva o ontem para sempre amanhã
Põe janeiro em dezembro
E a semente na flor
Vê o dia na noite
Redenção na dor
Leva a alma na palma
No inverno o calor
Faz do tempo joguete
Deleite
Seu melhor valor.