Não esquecer

Não esquecer de comprar o azul índigo e o roxo
De olhar os novos brotos
E de umedecer os olhos quando der.

Não esquecer de cerzir a roupa furada
E os rasgos no coração
O buraco roído na tela bordada.

Lembrar de trocar os momentos nos porta-retratos
Incluir os alentos a cada hora trabalhada
De esticar o corpo até desfazer a dor.

Comprar tudo para o bolo de maçã com canela
Sem motivo acender uma vela
Mais cuidado para as raízes da minha vida e o amor.

Máscaras de oxigênio

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“Em caso de despressurização, máscaras de oxigênio cairão automaticamente à sua frente. Coloque-a primeiro em você e somente depois ajude as pessoas que precisarem.” Este é um trecho das orientações sobre medidas de segurança que são enunciadas nos vôos do mundo todo. Eu já a ouvi muitas vezes, considero que já compreendo muito bem a recomendação mas, medrosa que sou, ainda dedico toda a minha atenção cada vez que um membro da tripulação se põe a repeti-la aos passageiros. “Vai que desta vez eu preciso…”, é o que eu sempre penso.
Viajando sozinha e recoberta por reflexões que me foram provocadas nos últimos dias, ouvi hoje a orientação de um jeito novo, como se eu nunca a tivesse escutado: “…primeiro você, depois os outros…” foi o que a comissária falou. Na verdade, tive a sensação de que a mocinha da animação do vídeo de segurança olhou e piscou pra mim. Quase ouvi meu nome após a pausa reticente do final da frase. Acho que ouvi!
Fantasiei que a mensagem continua sendo repetida em cada vôo porque não tenho feito certo e por isso o universo resolveu insistir comigo. Na maioria dos dias, fico sem máscara porque uso todas as que eu encontro para colocá-las em quem está perto de mim e, claro, como resultado óbvio, termino o dia sem ar. Não sou a única… é um pecado habitual de muitos que se repete, se repete… até se tornar parte de quem se é. Pois é… a mocinha do vídeo e a voz austera da comissária me deram o que pensar.
De onde nasce verdadeiramente este comportamento de auto-flagelação ou de negligência de si próprio que insistimos em manter? Talvez, a capa acetinada de herói nos tenha sido vendida sem manual qualquer. Talvez, tenhamos sido convencidos de que bom mesmo é quem se doa integralmente e se esquece. Essas mensagens são propagadas aos quatro ventos numa interpretação rasa dos ideais de grandes homens. Abandonar-se não é lógico, não é inteligente e produz uma série de efeitos danosos em cascata. Relegar-se ao segundo plano é mesmo desmerecer a própria importância como instrumento do que quer que seja… é deixar de zelar por alguém que pode ser um instrumento de paz junto a outro alguém. Para se priorizar o outro, é preciso ter condições de entregar o que se pretende ou o necessário no momento do auxílio. E ninguém é capaz disso ao perder-se de si mesmo.
Acho que hoje, os esforços de muitas pessoas queridas que tentam me ensinar a cuidar de mim mesma tiveram uma vitória. Cheque você também em que condições está a sua máscara. E lembre-se: preserve sua vida antes para que tenha o que oferecer ao seu próximo. Cuide-se!

Permita-se a dor

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Há tempos tenho refletido sobre a cultura da felicidade que percorre nossas ruas, põe em nossas gargantas uma válvula que impede o extravasamento da dor e em nossa face, o brilho opaco do sorriso planejado. O resultado é um caos interno que nos desorganiza e irrompe em males perversos.
Já é possível classificar o comportamento como um ato reflexo, habilidade instalada precocemente e repetida, repetida e generalizada, consistentemente automatizada. Há um acordo tácito e amargo assumido entre quem sofre a dor e quem a assiste gritar. De um lado, a pessoa se lança a uma exagerada busca de controle e de outro, todo o entorno se mobiliza para que este plano tenha sucesso, e que, sendo assim, a dor desapareça, rápida e silenciosamente. O incoerente neste contexto é que dores não desaparecem assim… ao sabor do gosto de alguém, ou para se manter intacto o cenário da cozinha iluminada com cheiro de pão quente e margarina. É da natureza da dor doer. É um benefício biológico sentir a dor, expressá-la e buscar amparo. Dores não desaparecem assim… A criança que corta o pé sente dor. O menino que cai da bicicleta sente dor. A adolescente magoada pela amiga sente dor. O velho que perde sua esposa sente dor. Dói nascer. Dói crescer. Dói perder e… talvez doa morrer. A cada um cabe a sua dor e a todos nós cabe o respeito, o abraço longo, o peito voluntário, o colo ao lamento. Não cabe a quem assiste a dor sufocá-la, calar o grito ou estancar sua vida. Não nos cabe exigir a força que se esvai ou subestimar a ferida. Porque a cada um de nós cabe um tanto de dor, e a todos nós cabe, irrestritamente, o amor.