Cores com vista para o rio OU O Rio Branco

Poderia ser um espelho
Para refletir o que o rio é.
Sendo quem é, o rio se basta.
Poderia ser o branco de um branco sem graça
No muro diante do rio.
Poderia ser só o rio
Sem nada a olhar o rio.
Mas é uma tela de cores
De gente e bicho e céu que vivem por aqui
Brotando do rio
E resistindo a tudo, com ele.
Trabalho de @ude_alc , Robson Duarte (@megart.graffiti), @gnos.am e @thaizis, em @marinameucasooficial, Boa Vista (RR), fotografia de Grace Donati, em 07 de abril de 2023.

Último dia

Hoje foi um dia morno, daqueles que nada acontece, sem graça… que talvez por isso mesmo tenha sido um dia bom, um dia com saúde e em paz, junto aos meus. Um dia ótimo se eu me lembrar do dia difícil que deve ter tido quem sofre tantas agruras e angústias, moléstia, violência ou um coração quebrado. Mas o que agita meus pensamentos neste fim de dia é como eu vou encará-lo quando eu tiver pra mim só um dia a mais. Nenhum a mais para desperdiçar com mesmices ou nada a fazer. A lembrança de hoje ou de outro dia parecido em vazio deverá pesar no meu peito um dia, mesmo que nas horas de agora ele tenha sido só um dia e nada demais.

De Eduardo Bustos Segovia (EUA), técnica mista. Fonte: https://pin.it/7FJjMqK

Sem título

Hoje eu guardei uma aquarela inacabada, fiz pilhas de caixas de dores abaixo e acima da mesa onde eu gosto de colorir, arranjei onde pude pedaços de lembranças tristes, tantas coisas em lugares inadequados, criando desordem e caos visual em minha casa. Arrumei tudo para ficar ainda tudo torto e errado, cheio de pó e veneno, invadindo a paz e o sagrado do meu morar. Os esqueletos e escuridões que atormentam minha serenidade cá dentro agora também se mostram fora no meu chão, nos resquícios trazidos pela carga daquele lugar onde eu abusei de mim mesma e me pus nua à ceia de pessoas tão vis. (Um dia eu luto pelo meu perdão). É uma confusão tão imensa esparramada em meio a lágrimas vertidas e uma desesperança, uma descrença de que possa haver qualquer devir, de um jeito que eu possa tocar, com substância e cheiro bom e luz.

Pedras preciosas

Foi numa corrida curta e ansiosa que o menino encontrou sua mãe à beira da piscina e disse, ainda ofegante: “Mãe, mãe, olha o que eu trouxe! Eu achei muitas pedras preciosas! Olha essa… aqui tem mais! Lá na praia, mãe, tem muitas pedras preciosas! E eu peguei esse monte aqui!”. A mãe acompanhava sorridente a apresentação do filho, com atenção, de pé, enquanto mexia numa coisa ou noutra. O pai, divertindo-se com toda a animação e doce ingenuidade da criança, deu corda à história: “Vamos ter que pagar excesso de bagagem pra levar toda essa pedra que você pegou!”. No segundo seguinte, antes que o menino pudesse ensaiar qualquer comentário, a sabedoria da mãe brilhou como o sol daquela manhã: “Mas como são pedras preciosas, vale a pena pagar”. Foi assim que eu vi o menino com o sorriso mais bonito daquele dia.

Frágil

E se eu me encaixotasse?
Com aquele símbolo de “frágil” por todos os lados, alertando para um manuseio cuidadoso…?
Eu seria poupada de tantos solavancos fazendo rachaduras em mim?
E se eu me prendesse num bordado floral repleto de cores, arrematando-me bem para não cair jamais?
Talvez me diluir em aquarela me resolva a dor de existir num mundo de tantas agressões.

Mundo nosso, nosso orgulho

O mundo não tem mais graça.
Não tem mais segredo
Não tem mais silêncio
Não tem mais respeito.
É só um entojado enjoado embolado
De canibais e vermes.
O que não é, é espaço vazio
Que flui pelas intermitências e foge de si mesmo
Com medo de se ver no resto
E de aumentar a massa que só fermenta e cresce.
O mundo já é completamente sem graça.
É aquela festa de gente bêbada tombada ao chão.
Desistente.
É o cheiro da mata queimada.
O crime anistiado.
A vida alheia tomada em comentário prosaico
Pra não se falar de si.
Da sua própria e íntima sujeira.
O mundo não tem nada de graça.
Tudo custa a alma pra quem tem
A escassez de quem não se tem.
Esse nada apático e inválido.
Custa o olho da cara.
Custa o tempo da poesia que eu não faço
E daquela música que me é honesta.
O mundo não tem graça nem é sério.
É o descaso curtindo a desgraça.
É a cada dia um despautério.
Bumba, o deus do vômito. Autoria desconhecida. Fonte: https://ngangamansa.wordpress.com/2019/09/06/bumba-el-dios-del-vomito/

Sensação de sonho

Foi devagar que eu cheguei. Abri o portão. Um passo e depois outro… mais um, mais alguns. Daí eu estava lá de pé, falando e falando e falando sobre o caminho. Feliz por ele. Mas, cá dentro, sem querer, eu me projetava sentada naquelas cadeiras, no lugar deles, ouvindo outra pessoa. Lembrava do sonho que eu nem sabia que tinha até quase ontem. Ah… é de cada coisa que a gente é feita…

O Estatuto do Homem, de Thiago de Mello

Artigo Primeiro

Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo Segundo

Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo Terceiro

Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo Quarto

Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único

O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino.

Artigo Quinto

Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa.

Artigo Sexto

Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor.

Artigo Sétimo

Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.

Artigo Oitavo

Fica permitido a qualquer pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco.

Artigo Nono

Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo Décimo

Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único

Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.

Artigo Décimo Primeiro

Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais compra o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou.

Artigo Final

Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso e das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.

(Santiago do Chile, abril de 1964 dedicado a Carlos Heitor Cony)


Em homenagem à obra desse poeta tão singular.