Foi devagar que eu cheguei. Abri o portão. Um passo e depois outro… mais um, mais alguns. Daí eu estava lá de pé, falando e falando e falando sobre o caminho. Feliz por ele. Mas, cá dentro, sem querer, eu me projetava sentada naquelas cadeiras, no lugar deles, ouvindo outra pessoa. Lembrava do sonho que eu nem sabia que tinha até quase ontem. Ah… é de cada coisa que a gente é feita…
Reflexão
Fumacinha
Morrer podia ser uma mudança lenta Nada de drama ou de dor Nada de lágrima. O vento, ao tocar o corpo levaria dele Um tanto do suor e do calor Um fio, um cheiro, um brilho. A cada sopro, menos do corpo um pouco A capa passagem pela carne Uma subtração de minúsculos pedaços de existência Uma viagem de cortes de si por aí A derradeira desconstrução sutil e flutuante. E assim, até virar fumacinha Uma ex-pessoa Seria eu mais feliz.
#JustiçaPorMiguel
Miguel, eu preciso falar com você. Dizer que eu sinto muito. Sinto muito… Quero dizer que teria sido incrível se esse seu sorriso lindo e terno tivesse tido muitos anos para viver. Preciso dizer a você que hoje eu sinto vergonha pela brancura que recobre a minha pele. Ainda bem que não sairei às ruas por estes dias e posso me esconder. Esconder o que o branco da minha pele significa no país em que eu vivo. Hoje eu sinto vergonha por ser brasileira… um sentimento que vem tomando conta dos meus cantos, me invadindo já há muitos anos. Eu sinto uma imensurável vergonha pela forma como tratamos as crianças, que precisam sobreviver a nós. Eu tenho pena das crianças brasileiras, que ao nascerem vislumbram um destino de obstáculos quase intransponíveis, como num game desses bem violentos, em que se esgotam todas as vidas e jamais se vence. Peço perdão pela irresponsabilidade e descaso que lhe empurraram sozinho para dentro de um elevador. Eu tenho raiva do desprezo que te jogou do 9.º andar. Eu tenho raiva das pessoas vis que chegam ao poder investindo na ignorância do povo, conduzido no cabresto. Todos eles te empurraram do 9.º andar, Miguel. Porque a mulher branquinha e loura que deveria ter zelado pela sua vida por menos de meia hora, enquanto sua mãe era abusada pelo sistema, integra o esquema criminoso todo de destruir pretos, pobres, gays, deficientes, crianças… Eu, sinceramente, gostaria que você tivesse tido todas as proteções a que tinha direito. Eu gostaria de ter conhecido você… quem sabe tomar um sorvete junto, sentar no chão e brincar… adoro brincar com as crianças, sabe, Miguel… é umas das coisas que enchem minha vida de cor. Eu vou rezar, tá bom? Para que você fique bem, num lugar de luz, que caminhe seu caminho em paz e que renasça como uma tulipa na Holanda ou um baobá em Madagascar… jamais criança no Brasil. Fique bem!

Para além da curva da estrada…, refletindo Alberto Caeiro
Lendo a “Poesia Completa de Alberto Caeiro” (Fernando Pessoa, São Paulo: Companhia das Letras, 2005), com comprometimento total pela primeira vez, tenho me deparado com versos que fariam festejar o mais dedicado adepto do Mindfulness. É uma celebração do agora, do estado presente, dos sentidos, da percepção, do palpável, do que se alcança hoje. É uma mensagem que vai bastante além da valorização da natureza. Toca o que há de essencial na própria essência, o núcleo, o imprescindível. Na página 88, abrindo “Poemas Inconjuntos”, revela-se o poema antídoto da ansiedade. É só ler e reler…
“Para além da curva da estrada Talvez haja um poço, e talvez um castelo, E talvez apenas a continuação da estrada. Não sei nem pergunto. Enquanto vou na estrada antes da curva Só olho para a estrada antes da curva, Porque não posso ver senão a estrada antes da curva. De nada me serviria estar olhando para outro lado E para aquilo que não vejo. Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos. Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer. Se há alguém para além da curva da estrada, Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada. Essa é que é a estrada para eles. Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos. Por ora só sabemos que lá não estamos. Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva Há a estrada sem curva nenhuma.”
Dia das Mães, 10 de maio de 2020
Meu nome é Grace, eu tenho 42 anos e viver este Dia das Mães está sendo bastante diferente do que foi vivê-lo nos últimos anos. Estamos no meio da pandemia do novo coronavírus, vivendo em afastamento social, e por isso não pude ir até minha mãe abraçá-la e declarar pessoalmente tudo o que eu guardo em meu coração, toda a gratidão pela dedicação desmedida para me fazer quem eu sou. Como não ia mesmo ter o calor do abraço, eu decidi fazer um vídeo para homenageá-la. Então, ontem eu me embrenhei por fotografias guardadas, antigas, fazendo um vai-e-vem entre o passado mais antigo e aquele nem tão antigo assim. Consegui selecionar algumas e montar o vídeo que eu queria.
Só que navegar entre fotos não é tão simples para mim. Elas exercem um grande fascínio e poder sobre minhas emoções. Conseguem me transportar para lugares, me fazem sentir cheiros, o vento, o amor e a dor dos momentos ali registrados. Eu fiz o vídeo, gostei muito de fazê-lo, mas as fotografias ficaram passeando em mim e me fizeram revisitar becos para onde não ia já há algum tempo.
Dormi, acordei e conversei com a minha amada, que tinha um sorriso lindo no rosto, terno, genuíno, forte. Falamos sobre o vídeo, declarei todo o meu amor e a minha gratidão. Daí, ela me nocauteou dizendo que carrega no peito a tristeza de não poder ter me ajudado a ser mãe.
E então, me dei conta, com mais seriedade, de que eu não serei mãe. Não mais. Não, em definitivo. Tenho uma mutação genética – reconhecida por mim desde muito pequena – que, entre outros efeitos, me pôs em menopausa aos 41 anos. No exame que fiz essa semana, avaliando ovários e endométrio, a médica disse assim… “o útero e os ovários já estão bem atrofiados, bem pequenininhos”. Achei tão louvável a tentativa dela em ser delicada, usando a palavra “pequeno” no diminutivo, mas para mim foi intenso sair da categoria do pequeno para um diminutivo enfaticamente decretado. Entrei no processo de falência do meu sistema reprodutor há mais de sete anos, mas finalmente ler “resultados normais para menopausa” me colocou em outro lugar na vida.
Hoje eu reconheço que apesar de alimentar uma perspectiva tão racional da coisa toda, repetindo a mim mesma e para os outros que estava tudo bem e que eu sempre soube que não seria mãe, eu desejei muito, muito, ser mãe. Desejei ser mãe vendo mães serem inadequadas, mas também vendo mães serem maravilhosas. Desejei ser mãe de tantas crianças que eu vi brincando na grama, correndo em festas, passeando no shopping. Desejei ser mãe de crianças que eu vi crescer pertinho de mim. Desejei ser mãe de crianças que não têm mãe.
Não sei dizer ao certo o quanto esse desejo vive no presente, o quanto é uma saudade de quando eu vivia no tempo do possível. Não sei de muita coisa sobre mim. Mas sei, mãe, que você não tem culpa de nada. Só tem uma enorme responsabilidade de ter me feito uma mulher forte, engajada, inteira, lutadora.
Jamais viverei o Dia das Mães sendo mãe, mas espero vivê-lo como filha, tendo o seu aconchego para sempre.
Falta

The Art of Not Panicking | Wired For Happy
wiredforhappy.com
A partir de Pinterest
Falta ar
Falta flor
O sorriso solto
Sobra dor
Falta a calma que eu nunca tive
Falta a alma sublime
A leveza sem medo
Falta espaço
Na minha garganta
Falta passo
No dia inteiro
Sobra aviso
E alarme
Falta árvore
Falta alívio
Ruído de riso amigo
Falta ar
No meu abrigo.
Inteligências de Mia Couto
Não é recente a expressão de Mia Couto no mundo, mas é recente o meu mergulho na sua literatura. Há algumas semanas, terminei “Antes de nascer o mundo” (Companhia das Letras, 2009), tecido sedutoramente entre rudezas e levezas num balanço refinado de prosa e poesia. Fui criando dobras nas páginas no correr da leitura para me lembrar de registrar o que me despertou pensar mais, ver do avesso, girar conceitos, redesenhar. Segue aqui minha dobra da página 241:
“Eis a lição que aprendi em Jesusalém: a vida não foi feita para ser pouca e breve. E o mundo não foi feito para ter medida.” (Disse assim Mwanito!).
Sentir em curtas XXIX
De vazio em vazio, sigo preenchendo o nada.
Sobre Arte
A Arte é verdade e é falsidade, ou realidade e irrealidade. Esta ideia oferece-nos, per se, elementos sobre o caráter do que é a Arte, que, na verdade, se concebe na ficção.
GONÇALVES, Carla Alexandra. Para uma introdução à Psicologia da Arte: as formas e os sujeitos. Lisboa: Edições 70, 2018, p. 55.
E se as tristezas forem mais do que as levezas…?
Não há dia que se faça somente de choro, ou só de riso, só de dentes aparecendo à toa, sabe? Ou só de coração batendo apertado e respiração curta, miúda e seca… Não há dia construído só disso ou só daquilo. Cada dia tem em si muitos dias que talvez não sejam… e outros tantos que certamente serão. Um dia é uma entidade bipolar por natureza. Tem dia que é pura noite, dia que nem se sente a noite, dia que se encomprida e pula a noite até ser dia de novo. Há dias em que levezas, adornadas de muitas e sutis belezas, fazem sorrir em segredo a alma e dançar a música que cadencia nossa voz. Mas tem dias… outros dias, em que tristezas são mais que as levezas. Daí, é de se pegar o dia claro que poderia ser e fazê-lo livre, viver.