Naquele domingo de manhã, a luz branca intensa parecia desejar mais do que doze horas de vida. Pungente e determinada, tirava as famílias de suas casas e as colocava em convívio festivo, dedicado ao descanso, aos passeios com os cães e à conversa solta.
Seguindo o fluxo, mas sem tanta determinação, o jovem casal despertou em seu apartamento e se manteve em tarefas prosaicas e preguiçosas, cada parte ao seu gosto. Aproximando-se do meio dia, qualquer ideia de exercício culinário foi, sem cerimônia, abandonada. Não caberiam panelas, receitas, nem sujar louça naquele único dia da semana para o repouso. Um dia em que a disposição se entregava ao nada e assim seguia.
Com a lentidão própria da situação, decidiram-se por almoçar fora. Não porque se buscasse sabores novos ou compensações, mas exclusivamente porque assim voltariam logo para casa, poupados de qualquer trabalho, prontos para a solidão necessária do domingo.
Arrumaram-se no limite do necessário, desceram até o carro e seguiram para o restaurante habitual. Música boa tocando, previsões de delícias simples no buffet e de repente um dos celulares toca. A moça se antecipou a checar, mas era o telefone do seu marido que tocava. Ele encostou o carro, atendeu a chamada e em alguns segundos anunciou: – “Vou ter que ir no trabalho. Há uma emergência lá”.
Pronto! Que se alterem os planos… A roupa de domingo teria que ser trocada, nada de almoço, nada de companhia, nada de nada. Retornaram ao apartamento para que ele se trocasse e no trajeto, a orientou: – “Vá você almoçar. Não me espere. Eu posso demorar e você precisa comer”. Combinaram que ela faria uma marmita para ele e o aguardaria em casa.
Assim se deu. Saíram em carros separados, frustrados, cada um com seu destino.
Ao adentrar o salão principal do restaurante, o incômodo no rosto dela era notável. Uma mistura de desapontamento, talvez saudades de viver o que imaginara, e desconforto por estar sozinha em meio a tantas pessoas acompanhadas, em família. Era só olhar e estava ali: uma peça que não se encaixava.
Como tal, pôs-se à parte e observou, observou, observou… Com um sorriso maroto no rosto, concluiu que encontrara sua diversão para o almoço: imaginar pensamentos e histórias para as pessoas das outras mesas. Isto porque só almoçar não amenizaria a solitude do momento. Seria preciso mais para que a comida descesse com leveza e sem pressa.
Com a tarefa em mente, ela escolheu a última mesa do salão, o que daria à sua visão muitas opções de personagens. Depois de vagar o olhar por duas ou três pessoas e se espantar com a indelicadeza das ações, encontrou sua personagem ou vítima. Era uma mulher, sentada exatamente à sua frente, de costas, a três mesas vazias de distância. A jovem estava acompanhada de um homem e outros três casais. Curioso que estava sentada na cadeira mais próxima à parede e que as outras moças se animavam num papo efusivo, repleto de gargalhadas e segredinhos nas cadeiras da outra ponta, a quilômetros de distância de Ana, como foi batizada pela nossa voyer.
Ana tinha cabelos lisos, médios e escuros, brilhantes e organizados. Portava-se bem, com gestos raros e delicados, e quase não existia naquele lugar. Seu marido – assim foi decretado na criação de sua história – fazia a conversa fluir com seus colegas. A ela ninguém se dirigia. De tempo em tempo, Ana checava algo em seu celular, rolando uma tela e mexendo no cabelo. A mim não foi revelado o que Ana lia ou via. Não pude acessar, tampouco, os detalhes criados pela minha observadora solitária. Fui tomada por este grande distrativo que é observar a solidão em meio a multidão. Ana tomou toda minha atenção e eu mesma, me pus a escrutinar sua vida, seus sonhos, seus dramas…
Mantive-me suspensa pela linha de olhar entre a esposa voyer e o isolamento de Ana e assim permaneci pela duração longa que teve aquele almoço. Ana já não comia mais. De vez em quando bebericava algo de seu copo e levantava a cabeça, simulando atenção à conversa masculina que seguia sem pausas. Não vimos seu rosto, sua tristeza ou resignação. Não pudemos nos sossegar com uma alegria que talvez estivesse sendo reprimida… para segredar o contato íntimo com outro alguém. Muitas dúvidas ficaram sem respostas. Por que as outras moças não convocaram Ana? Por que ela mesma se protegeu de qualquer contato? E por que sempre pensamos que estar só não é bom ou não é uma escolha?
Notei que a esposa desistiu de esperar alguma chance de ver o rosto de Ana. Ela terminara o almoço, o tempo passara rápido e em seu celular não aparecia uma mensagem do seu amor, anunciando uma chegada breve. Era hora de também abandonar Ana e fazer a marmita do seu marido. Hora de parar de brincar.
Ela se levantou e de modo nada hábil, criou um trajeto esdrúxulo, num último esforço para conhecer o rosto de Ana. Nada feito. Tudo parecia impedir que Ana ganhasse contornos mais reais. Seria para sempre a mulher sem rosto e com a alma escondida.
Um suspiro para acalentar a decepção, prato do marido feito, pagamento no caixa e um bombom como última diversão do almoço. E lá se foi a esposa, rumo à poesia da tarde, na espera do seu bem.
Eu não deixei aquele lugar até conhecer o brilho dos olhos de Ana. E o que eu teria para revelar não é de fazer ninguém mais feliz.