#JustiçaPorMiguel

Miguel, eu preciso falar com você. Dizer que eu sinto muito. Sinto muito… Quero dizer que teria sido incrível se esse seu sorriso lindo e terno tivesse tido muitos anos para viver. Preciso dizer a você que hoje eu sinto vergonha pela brancura que recobre a minha pele. Ainda bem que não sairei às ruas por estes dias e posso me esconder. Esconder o que o branco da minha pele significa no país em que eu vivo. Hoje eu sinto vergonha por ser brasileira… um sentimento que vem tomando conta dos meus cantos, me invadindo já há muitos anos. Eu sinto uma imensurável vergonha pela forma como tratamos as crianças, que precisam sobreviver a nós. Eu tenho pena das crianças brasileiras, que ao nascerem vislumbram um destino de obstáculos quase intransponíveis, como num game desses bem violentos, em que se esgotam todas as vidas e jamais se vence. Peço perdão pela irresponsabilidade e descaso que lhe empurraram sozinho para dentro de um elevador. Eu tenho raiva do desprezo que te jogou do 9.º andar. Eu tenho raiva das pessoas vis que chegam ao poder investindo na ignorância do povo, conduzido no cabresto. Todos eles te empurraram do 9.º andar, Miguel. Porque a mulher branquinha e loura que deveria ter zelado pela sua vida por menos de meia hora, enquanto sua mãe era abusada pelo sistema, integra o esquema criminoso todo de destruir pretos, pobres, gays, deficientes, crianças… Eu, sinceramente, gostaria que você tivesse tido todas as proteções a que tinha direito. Eu gostaria de ter conhecido você… quem sabe tomar um sorvete junto, sentar no chão e brincar… adoro brincar com as crianças, sabe, Miguel… é umas das coisas que enchem minha vida de cor. Eu vou rezar, tá bom? Para que você fique bem, num lugar de luz, que caminhe seu caminho em paz e que renasça como uma tulipa na Holanda ou um baobá em Madagascar… jamais criança no Brasil. Fique bem!

Miguel, Técnica Mista sobre Canson preto 150, de Grace Donati

Pequena história de uma biruta

Uma busca rápida em sites de pesquisa é capaz de nos informar, com linguagem pomposa, que biruta “é uma manga ou tubo de tecido, semelhante a um saco cônico, com a abertura mais larga presa a um aro e fixa a um mastro, e a outra, mais estreita, solta, que se enfuna quando o vento sopra, indicando, assim, a direção deste”. No entanto, após ter sido presenteada com uma biruta criativa e inovadora, é necessário acrescentar sentido à definição. Thiago, o personagem principal desta história e inventor da alegre biruta, fez de nosso encontro prosaico, uma poesia de expressão de saudades e entusiasmo, entregando-me o presente especial que trazia consigo, após uma revelação lenta e solene para o efeito de maior surpresa. Pousando olhos sorridentes sobre mim, deflagrou sua arte escondida: “É pra você! É uma biruta!”. E então, antecipando-se a qualquer manifestação da minha ignorância, acrescentou: “Serve para indicar a direção do vento. Assim, você sempre saberá para onde ir.” A biruta, construída com papel e moldada em formato cilíndrico ostenta grafismos de bela sensibilidade, com cores vibrantes e que se finda em tiras de crepon azul, que têm a enorme responsabilidade de me indicar para onde seguir. Thiago sugeriu que eu pendurasse a biruta em minha sala de trabalho para que sempre me lembre dele. E que a coloque ao vento, quando desejar descobrir para onde ele sopra. Sei, na verdade, que quando olhar para minha biruta, mesmo no interior protegido da minha sala, lembrarei que a direção a ser tomada deve ser aquela que me põe ao encontro de um outro alguém.

Sede

Tenho uma sede de vida
Que me atira sem vagar ao dia
Me põe à beira de tudo
Me lança em mais poesia

Tenho vontade profunda
Daquela que desperta à noite
Palpita forte o coração
Vem sem fim, nem fonte

Tenho o desejo do mundo
Que me laça fugaz num mergulho
Faz folia na razão
Me arrasta num segundo

Tenho uma sede de vida
Que me atira sem vagar ao dia
Me põe à beira de tudo
Me lança em mais poesia.