Sobre as perfeições de Ismael

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Dias atrás, iniciando uma viagem profissional a Brasília, conheci um rapaz com atitude e alegria extraordinárias – principalmente para aquela hora da manhã! Ismael me entregou um sorriso e um tanto de gentileza, oferecendo-se para colocar minha mala no compartimento de bagagem.
Após vinte e quatro cirurgias para correção de fissura de lábio e palato, Ismael – que se mostrava orgulhoso de sua capacidade comunicativa -, logo iniciou um diálogo comigo, que se estendeu por todo o vôo. Não fiz qualquer esforço para conversar com Ismael. Suas palavras fluíam claras e atendiam um raciocínio organizado e repleto de entusiasmo. Curiosamente, ao narrar detalhes de sua história de vida, ele parecia me mandar mensagens que eu realmente precisava ouvir.
Talvez tenha sido uma das últimas visitas de Ismael ao HRAC (ou “Centrinho” para os amigos de longa data), hospital de Bauru há muito reconhecido como referência no tratamento de anomalias crânio-faciais. Seus inúmeros ganhos terapêuticos, frutos de muito esforço, paciência e dedicação já lhe garantem trocar pensamentos e alegrias com grande habilidade. Logo, Ismael receberá alta fonoaudiológica. É, hoje, um competente falante de nossa língua. Além disso, é também cantor e compositor. Com seu violão, Ismael se dedica a distribuir mensagens de alegria nas salas de espera do hospital – deste e de outros em Brasília. Não consigo imaginar o que deve representar sua presença, assim simples e recoberta pela arte, para a esperança de quem ainda inicia a jornada da reabilitação.
As experiências de superação de Ismael podem ser exibidas como uma coleção: sua madrinha fez uma campanha para arrecadar dinheiro para sua primeira viagem a Bauru. Foi vítima de preconceito na escola inúmeras vezes, provavelmente bem mais do que tenha compartilhado. Mas, certa vez virou o jogo a seu favor. Oito meninos se organizaram para surrá-lo porque ele não falava seguindo os padrões normais. Ele olhou para os colegas e disse: “Pó maiá!”, convidando todos eles para seguir com a malhação que intentavam. Em vez de bater, os meninos se surpreenderam e começaram a rir. Ele ganhou ali um apelido e, talvez, um pouco mais de respeito. Como “Pómaiá”, passou a ser defendido pelo grupo. Para as terapias de voz, utilizava o horário de almoço e definia objetivos ambiciosos junto com sua fonoaudióloga. Dedicou-se com afinco para produzir corretamente o som do “s” porque sabia que era importante para sua chefe ser chamada de “Cidinha” e não Maria Aparecida. Muitas vezes, ele se sentiu menor, menos, incapaz. Ainda bem que ele pôde se convencer do contrário e fazer-se exemplo de luz para a vida de outras pessoas.
A certa altura de nossa conversa, Ismael disse assim: “Você tem a beleza da saúde, é perfeita. Eu precisaria conviver com você para descobrir algum defeito”. Para nós, que integramos o grupo de pessoas sem deficiência visível, é assim: conseguimos esconder nossas imperfeições e partes mutiladas, as ausências. Mas, acredite, Ismael, elas existem, e são inúmeras, ainda que sob o véu da minha capa sem fissuras.

NOTA: Ismael concedeu, gentilmente, autorização para a postagem deste texto. Em trocas de mensagens para tal autorização, ele solicitou que fosse registrada a importância do apoio constante de sua família, amigos e de sua esposa para todas as conquistas que narrou. É… Uma alma nobre este Ismael!!