Não esquecer

Não esquecer de comprar o azul índigo e o roxo
De olhar os novos brotos
E de umedecer os olhos quando der.

Não esquecer de cerzir a roupa furada
E os rasgos no coração
O buraco roído na tela bordada.

Lembrar de trocar os momentos nos porta-retratos
Incluir os alentos a cada hora trabalhada
De esticar o corpo até desfazer a dor.

Comprar tudo para o bolo de maçã com canela
Sem motivo acender uma vela
Mais cuidado para as raízes da minha vida e o amor.

Celebrada

Minha mãe minha tia minha avó
Minha sogra a vizinha minha irmã
A professora e a enfermeira, minha amiga
A Maria, eu mesma, a outra amiga
A cunhada e a menina a filha
A prima da tia da manicure
A estudante e a recepcionista
A médica e a secretária a faxineira
A bombeira a cobradora a vendedora
A babá da empresária a cozinheira
A presidente a atendente e a dentista
A pesquisadora a jornalista e a bebê
A terapeuta e a médica e a sambista
A antropologista
São pisoteadas e amassadas
Rasgadas e vilipendiadas
Invadidas manchadas
Massacradas torturadas
Esquecidas e abandonadas
Ludibriadas e espancadas
Diminuídas e ignoradas

E cada uma é celebrada
Quando pari menino
Que não se pari sozinho
E um dia vira algoz.
Disponível no Pinterest, postado por supernova bubble. Sem autoria declarada.

Os livros da nossa casa

Os livros da nossa casa ficam em todos os cantos. Eles se derramam de pilhas que avançam até o teto, como mel caindo da colher. Alguns estão atrás da TV, aguardando serem buscados pela curiosidade nova que desiste da tela preta e carece de imagens guardadas nas palavras clássicas, antigas, referências. Na sala tem livros do que pretender o desejo… da regra listada no manual de empreendedorismo ao compêndio mais completo de Arte Sacra e Monet, Manet, Renoir. Caravaggio está na sala de jantar, onde não se janta. Neruda na mesa espelhada ao lado do sofá fica sobre a gestão do tempo, que ainda está ali porque esperamos que ela opere milagres em nós. Há livros vários se empilhando nas mesas de cabeceira, disputando o torpor do sono, o raciocínio dormente e fugidio da hora de dormir que já passou. Sempre. Todo dia. Tem anatomia, fisiologia, crimes e código penal, romance e declarações apaixonadas para flores, compêndios, manuais, mais códigos, a bíblia branca do comportamento, comunicação e o que a impede, Fernando Pessoa, Clarice, Drummond e Cony. Tem Kafka, Osho, Dostoiévski. Graciliano Ramos, Saramago e manuelismos. Todos em estantes, lado a lado, para a cerimônia do nosso reencontro, na biblioteca, onde se trabalha e se fala de quase tudo. Onde grandes ideias nascem e dores também. Onde também se cura. Os livros todos à espera de um movimento qualquer, uma consulta, ou saudade, de um livro lido ou da novidade da vez, talvez um Jabuti, um Nobel. Tem livro na cozinha, sob a minha segunda tela e misturados a tintas e pincéis e debruçado sobre meu maior estojo de aquarela no atelier que acolhe minhas indecisões e fluxo, influxo, os vazios. Tem livro sobre o piano e ao seu lado, com muitas notas que ainda não toquei porque espero um Molto Vivace na alma para me jogar ao teclado. Tem livro em gavetas e armários. Tem livro que eu escrevi. Dois. E tantos outros em que estou capturada em capítulos ou prefácio e posfácio. Temos livros lidos, relidos, alguns abandonados, livros comprados duas vezes por tamanho encantamento. Há livros que só nos aguardam. E outros que só existem. Acho que para por mais beleza na mobília, no cenário, na vida ou porque aguardam o ano sabático. Tem livro com príncipe que cuida de uma rosa, em português, espanhol e francês. Tem livro que só existe aqui. Tem livro escrito pela criança que mais amamos. E tem livro que nasce no meio de todos estes outros, indo e vindo em todo canto. Nos cantos de livros que constróem a nossa casa. Ainda bem.