Se a gente olhar a própria pele bem de perto, ao final do dia, com uma lupa, talvez, é possível encontrar minúsculos cristais de sal, repletos de substâncias, além de água. É o produto do que suamos, de um trabalho silencioso e competente do corpo para regular a temperatura corporal. Nunca entendi porque isso também não acontece com as nossas emoções e pensamentos. Um processo de expelir alguns deles pra gerar um novo equilíbrio, eliminar os excessos. Imagina só, junto com as 373 substâncias nas gotas de suor, teria ao menos cinco pensamentos desprezíveis, duas fantasias infrutíferas, uma ou outra emoção fantasma, que só servem pra tirar tudo do eixo. Daí, na intimidade de um banho refrescante, tudo se desprenderia da nossa pele, em forma de cristaizinhos ganhando a correnteza da água.
Autor: Grace Cristina Ferreira-Donati
A estrela mais brilhante
“Aquela estrela… é a luz mais brilhante nascendo. É pra lá que vamos.”

Bagunça e ordem
Não sei exatamente a partir de quando eu fui deixando de arrumar a minha cama de manhã cedo, de guardar as roupas trocadas antes do banho, de encaixar no lugar certo os objetos de todos os dias. Do mesmo jeito, tudo aqui dentro foi ficando desarrumado, com dobras e desencaixes, tudo amassado, caído, rasgado e torto. Não sei o que se desarranjou antes… se foi a cama ou se foi o peito. Não é muito fácil trilhar a vida com uma profusão de pensamentos bailando num caos, com emoções que nem se apercebem, um coração retalhado. Dá muito trabalho arrumar. É necessário esforço, disciplina, um bom tanto de “fazer mesmo sem querer” quando o que o desejo quer é colar o corpo no sofá, estirar a alma no chão e viver de anestesia. Tenho testado arrumar fora pra ver a organização aqui dentro e o contrário também. Tenho experimentado até tolerar o caos, aceitar que a vida é bagunça e brincar no meio dela, pegar as roupas amassadas e fazer fantasia… figurino pra sair dançando pelas luzes e sombras do dia. Vai ver é assim mesmo que a gente é, apesar de toda a rigidez e controle que possamos querer… bagunça e ordem, desordem que se arruma e se refaz. É ir e vir, é certo e errado… organiza e desarruma, a gente é e não é. E muda assim o tempo todo que se tem. É isso mesmo: a gente é e também não é.

Na ventania
Na ventania, há quem se agite com o ar turbulento e coloca os pensamentos em tormenta. As palavras saem cuspidas em violência. Na ventania também há quem se deleite com a calmaria da alma enquanto se diverte com a dança das folhas pra lá e pra cá. E se pacifica com o movimento inexorável da vida. É só aceitar que o vento venta.

Mariposas Monarcas
“Você reparou nas mariposas amarelas que voavam quando nós chegamos aqui no cenote?”, eu disse que sim, com olhar curioso e atento, entregue à história que viria com a docilidade e a firmeza do timbre espanhol autêntico. “Elas são as mariposas monarcas, são lindas, não são? Minha mãe as adorava! Há santuários de mariposas monarcas aqui, lugares em que elas vivem livres, juntas e formam um espetáculo incrível de se assistir. É algo indescritível, eu gostaria muito que você conhecesse… Minha mãe morreu há um ano e meio e infelizmente eu não consegui levá-la para admirar as mariposas uma última vez. E agora, quando eu as vi aqui foi uma feliz surpresa…”. Letícia, então, fez uma pausa, olhou para a estrada alongada e deserta à nossa frente enquanto ajeitava o corpo na poltrona do ônibus, virou-se novamente para mim e continuou. “Vim fazer essa excursão com a minha família, eu não tirava férias há 13 anos… e então acabo tendo um encontro com as mariposas monarcas! Hoje é um dia feliz.” Depois, ela foi revelando mais algumas informações, dizendo que as mariposas migram do Canadá no outono para passar o inverno no México, voando mais de quatro mil quilômetros. “Não é sempre que elas estão por aqui.” A história tranquilizou o ritmo de tudo naquela tarde quente, amainou minha febre e deu colo aos calafrios que eu estava sentindo, em meio a tantas outras sensações de insegurança, solidão, medo, vergonha… O que fez Letícia me eleger como interlocutora eu jamais vou saber. O que restou em mim foi perceber que eu só estava conversando com aquela mulher tão doce e somente conheci as mariposas monarcas porque assim como elas eu saí da rigidez do meu lugar e também cheguei ao México. Letícia e eu, nos decifrando mutuamente, refletíamos que para pessoas como nós é mais confortável ser árvore, mas fazemos grandes descobertas e nos inflamos de vida quando ousamos ser mariposas.

Um silêncio pequeno
Uma molécula de silêncio quase não existe
É uma quase existência
Quase nada
É uma pequenez oculta em si mesma
Que flutua no ar
Pousa numa folha
E repousa para sempre.

Cores com vista para o rio OU O Rio Branco
Poderia ser um espelho
Para refletir o que o rio é.
Sendo quem é, o rio se basta.
Poderia ser o branco de um branco sem graça
No muro diante do rio.
Poderia ser só o rio
Sem nada a olhar o rio.
Mas é uma tela de cores
De gente e bicho e céu que vivem por aqui
Brotando do rio
E resistindo a tudo, com ele.

Último dia
Hoje foi um dia morno, daqueles que nada acontece, sem graça… que talvez por isso mesmo tenha sido um dia bom, um dia com saúde e em paz, junto aos meus. Um dia ótimo se eu me lembrar do dia difícil que deve ter tido quem sofre tantas agruras e angústias, moléstia, violência ou um coração quebrado. Mas o que agita meus pensamentos neste fim de dia é como eu vou encará-lo quando eu tiver pra mim só um dia a mais. Nenhum a mais para desperdiçar com mesmices ou nada a fazer. A lembrança de hoje ou de outro dia parecido em vazio deverá pesar no meu peito um dia, mesmo que nas horas de agora ele tenha sido só um dia e nada demais.

Bota tinta na ferida
Na ferida
Bota tinta
E flor
E com palavra
Rega tudo
E dilui
A forte cor
Com a lágrima da dor
Aquarela
A poeta
Cuida do corte
Que arde
Com arte
E espera
A ferida brotar
O pus sair
A casca cair
E cuida
Da pele
Amacia a cicatriz
Sendo apesar
Obstante
Feliz.

Sem título
Hoje eu guardei uma aquarela inacabada, fiz pilhas de caixas de dores abaixo e acima da mesa onde eu gosto de colorir, arranjei onde pude pedaços de lembranças tristes, tantas coisas em lugares inadequados, criando desordem e caos visual em minha casa. Arrumei tudo para ficar ainda tudo torto e errado, cheio de pó e veneno, invadindo a paz e o sagrado do meu morar. Os esqueletos e escuridões que atormentam minha serenidade cá dentro agora também se mostram fora no meu chão, nos resquícios trazidos pela carga daquele lugar onde eu abusei de mim mesma e me pus nua à ceia de pessoas tão vis. (Um dia eu luto pelo meu perdão). É uma confusão tão imensa esparramada em meio a lágrimas vertidas e uma desesperança, uma descrença de que possa haver qualquer devir, de um jeito que eu possa tocar, com substância e cheiro bom e luz.