Na ventania

Na ventania, há quem se agite com o ar turbulento e coloca os pensamentos em tormenta. As palavras saem cuspidas em violência. Na ventania também há quem se deleite com a calmaria da alma enquanto se diverte com a dança das folhas pra lá e pra cá. E se pacifica com o movimento inexorável da vida. É só aceitar que o vento venta.

De Pinterest, sem autoria identificada

Mariposas Monarcas

“Você reparou nas mariposas amarelas que voavam quando nós chegamos aqui no cenote?”, eu disse que sim, com olhar curioso e atento, entregue à história que viria com a docilidade e a firmeza do timbre espanhol autêntico. “Elas são as mariposas monarcas, são lindas, não são? Minha mãe as adorava! Há santuários de mariposas monarcas aqui, lugares em que elas vivem livres, juntas e formam um espetáculo incrível de se assistir. É algo indescritível, eu gostaria muito que você conhecesse… Minha mãe morreu há um ano e meio e infelizmente eu não consegui levá-la para admirar as mariposas uma última vez. E agora, quando eu as vi aqui foi uma feliz surpresa…”. Letícia, então, fez uma pausa, olhou para a estrada alongada e deserta à nossa frente enquanto ajeitava o corpo na poltrona do ônibus, virou-se novamente para mim e continuou. “Vim fazer essa excursão com a minha família, eu não tirava férias há 13 anos… e então acabo tendo um encontro com as mariposas monarcas! Hoje é um dia feliz.” Depois, ela foi revelando mais algumas informações, dizendo que as mariposas migram do Canadá no outono para passar o inverno no México, voando mais de quatro mil quilômetros. “Não é sempre que elas estão por aqui.” A história tranquilizou o ritmo de tudo naquela tarde quente, amainou minha febre e deu colo aos calafrios que eu estava sentindo, em meio a tantas outras sensações de insegurança, solidão, medo, vergonha… O que fez Letícia me eleger como interlocutora eu jamais vou saber. O que restou em mim foi perceber que eu só estava conversando com aquela mulher tão doce e somente conheci as mariposas monarcas porque assim como elas eu saí da rigidez do meu lugar e também cheguei ao México. Letícia e eu, nos decifrando mutuamente, refletíamos que para pessoas como nós é mais confortável ser árvore, mas fazemos grandes descobertas e nos inflamos de vida quando ousamos ser mariposas.

Mariposa Monarca, (licença creative commons)

Cores com vista para o rio OU O Rio Branco

Poderia ser um espelho
Para refletir o que o rio é.
Sendo quem é, o rio se basta.
Poderia ser o branco de um branco sem graça
No muro diante do rio.
Poderia ser só o rio
Sem nada a olhar o rio.
Mas é uma tela de cores
De gente e bicho e céu que vivem por aqui
Brotando do rio
E resistindo a tudo, com ele.
Trabalho de @ude_alc , Robson Duarte (@megart.graffiti), @gnos.am e @thaizis, em @marinameucasooficial, Boa Vista (RR), fotografia de Grace Donati, em 07 de abril de 2023.

Último dia

Hoje foi um dia morno, daqueles que nada acontece, sem graça… que talvez por isso mesmo tenha sido um dia bom, um dia com saúde e em paz, junto aos meus. Um dia ótimo se eu me lembrar do dia difícil que deve ter tido quem sofre tantas agruras e angústias, moléstia, violência ou um coração quebrado. Mas o que agita meus pensamentos neste fim de dia é como eu vou encará-lo quando eu tiver pra mim só um dia a mais. Nenhum a mais para desperdiçar com mesmices ou nada a fazer. A lembrança de hoje ou de outro dia parecido em vazio deverá pesar no meu peito um dia, mesmo que nas horas de agora ele tenha sido só um dia e nada demais.

De Eduardo Bustos Segovia (EUA), técnica mista. Fonte: https://pin.it/7FJjMqK

Sem título

Hoje eu guardei uma aquarela inacabada, fiz pilhas de caixas de dores abaixo e acima da mesa onde eu gosto de colorir, arranjei onde pude pedaços de lembranças tristes, tantas coisas em lugares inadequados, criando desordem e caos visual em minha casa. Arrumei tudo para ficar ainda tudo torto e errado, cheio de pó e veneno, invadindo a paz e o sagrado do meu morar. Os esqueletos e escuridões que atormentam minha serenidade cá dentro agora também se mostram fora no meu chão, nos resquícios trazidos pela carga daquele lugar onde eu abusei de mim mesma e me pus nua à ceia de pessoas tão vis. (Um dia eu luto pelo meu perdão). É uma confusão tão imensa esparramada em meio a lágrimas vertidas e uma desesperança, uma descrença de que possa haver qualquer devir, de um jeito que eu possa tocar, com substância e cheiro bom e luz.

Pedras preciosas

Foi numa corrida curta e ansiosa que o menino encontrou sua mãe à beira da piscina e disse, ainda ofegante: “Mãe, mãe, olha o que eu trouxe! Eu achei muitas pedras preciosas! Olha essa… aqui tem mais! Lá na praia, mãe, tem muitas pedras preciosas! E eu peguei esse monte aqui!”. A mãe acompanhava sorridente a apresentação do filho, com atenção, de pé, enquanto mexia numa coisa ou noutra. O pai, divertindo-se com toda a animação e doce ingenuidade da criança, deu corda à história: “Vamos ter que pagar excesso de bagagem pra levar toda essa pedra que você pegou!”. No segundo seguinte, antes que o menino pudesse ensaiar qualquer comentário, a sabedoria da mãe brilhou como o sol daquela manhã: “Mas como são pedras preciosas, vale a pena pagar”. Foi assim que eu vi o menino com o sorriso mais bonito daquele dia.

Frágil

E se eu me encaixotasse?
Com aquele símbolo de “frágil” por todos os lados, alertando para um manuseio cuidadoso…?
Eu seria poupada de tantos solavancos fazendo rachaduras em mim?
E se eu me prendesse num bordado floral repleto de cores, arrematando-me bem para não cair jamais?
Talvez me diluir em aquarela me resolva a dor de existir num mundo de tantas agressões.

Mundo nosso, nosso orgulho

O mundo não tem mais graça.
Não tem mais segredo
Não tem mais silêncio
Não tem mais respeito.
É só um entojado enjoado embolado
De canibais e vermes.
O que não é, é espaço vazio
Que flui pelas intermitências e foge de si mesmo
Com medo de se ver no resto
E de aumentar a massa que só fermenta e cresce.
O mundo já é completamente sem graça.
É aquela festa de gente bêbada tombada ao chão.
Desistente.
É o cheiro da mata queimada.
O crime anistiado.
A vida alheia tomada em comentário prosaico
Pra não se falar de si.
Da sua própria e íntima sujeira.
O mundo não tem nada de graça.
Tudo custa a alma pra quem tem
A escassez de quem não se tem.
Esse nada apático e inválido.
Custa o olho da cara.
Custa o tempo da poesia que eu não faço
E daquela música que me é honesta.
O mundo não tem graça nem é sério.
É o descaso curtindo a desgraça.
É a cada dia um despautério.
Bumba, o deus do vômito. Autoria desconhecida. Fonte: https://ngangamansa.wordpress.com/2019/09/06/bumba-el-dios-del-vomito/