Nada torto meio sem terminar

Nada em mim se resolve
Nada vive certo e arrumado
Em mim tem uma caixa de cristal velha que foi derrubada
Minhas sutilezas andam a se esgueirar entre cacos
Tenho anestesias correndo pelas veias
E eu só quero de volta todas as minhas sensibilidades.
As sombras de aflições se contorcem sem se nomear
Eu não enxergo, não ouço, não toco
Não alcanço nada do que eu sou.
Eu voo só
Só vou.
Vive em mim o nada torto meio sem terminar.
Ou nem isso
Ou nem é essa que sou.

Abusada

Qual nome dar à contingência em que baixamos a guarda irresponsavelmente, expondo-nos a agressões e vilipêndios, senão abuso? O abuso do outro autorizado por nós mesmas. Quase soando como um convite… Os outros, enforcados pelo egoísmo de ser quem são, não se alertam para a necessidade do trato gentil e afável. Angustiados em estarem tão poucos ou apequenados, nos encontram atirando-se sobre nós. Assim, somos aniquilados. Às vezes em doses divididas ao passar dos dias, outras vezes, de uma força só.

Desde a última semana fui invadida a partir de muitas frestas desguarnecidas e estou imersa na sensação de abuso, notando-me ao mesmo tempo, com profunda raiva de mim mesma por ter permitido. Eu consenti que determinassem como eu usaria o meu tempo, permiti-me estar com pessoas doentes e que me adoeceram intensa profundamente, me causando dor. Fiz coisas de um jeito torto, no improviso irresponsável, ouvi piadas sobre minhas fragilidades, fui enganada flagrantemente, fui beijada por uma pessoa vil, vi rasgarem minhas roupas por descuido e quebrarem lembranças por desmazelo.

Toda relação humana é potencialmente traumática. Pender a balança para a possibilidade do não-traumático depende de alta vigilância, um espírito alerta atento às ameaças, aos movimentos fortuitos. É preciso sensibilidade canina e presença para identificar quem quer lhe roubar tempo, afeto, dedicação, pedaços físicos… Fico com a impressão de que poetas não sabem se defender, cuidar do próprio espaço e de si e acho que eu estava poeta por estes dias aí. Talvez por toda a vida. Assisti passiva a todas as ofensas silenciosas e quase imperceptíveis que me atingiram e nada fiz. Eu sorri, eximi as pessoas de responsabilidade, toquei os dias e agora me encontro no chão de uma auto-piedade que é infrutífera, quase vergonhosa. Enraivecida, furiosa com minha programação infantil de aceitar tudo, todos, de qualquer jeito, a qualquer hora, o que vier, aquiescendo o que o outro deseja para si, entregando de mim qualquer coisa. Tenho ódio desse padrão que jamais irá se esvanecer, de não saber manter as portas e as janelas fechadas quando eu quero e de dizer basta, não, chega. Eu hoje me descubro mais uma vez como a minha própria e mais cruel abusadora. Os outros só fazem o que eu permito. E por isso, hoje, e talvez para sempre, essa raiva dormirá comigo.

A agressão n.6

Mariposas Monarcas

“Você reparou nas mariposas amarelas que voavam quando nós chegamos aqui no cenote?”, eu disse que sim, com olhar curioso e atento, entregue à história que viria com a docilidade e a firmeza do timbre espanhol autêntico. “Elas são as mariposas monarcas, são lindas, não são? Minha mãe as adorava! Há santuários de mariposas monarcas aqui, lugares em que elas vivem livres, juntas e formam um espetáculo incrível de se assistir. É algo indescritível, eu gostaria muito que você conhecesse… Minha mãe morreu há um ano e meio e infelizmente eu não consegui levá-la para admirar as mariposas uma última vez. E agora, quando eu as vi aqui foi uma feliz surpresa…”. Letícia, então, fez uma pausa, olhou para a estrada alongada e deserta à nossa frente enquanto ajeitava o corpo na poltrona do ônibus, virou-se novamente para mim e continuou. “Vim fazer essa excursão com a minha família, eu não tirava férias há 13 anos… e então acabo tendo um encontro com as mariposas monarcas! Hoje é um dia feliz.” Depois, ela foi revelando mais algumas informações, dizendo que as mariposas migram do Canadá no outono para passar o inverno no México, voando mais de quatro mil quilômetros. “Não é sempre que elas estão por aqui.” A história tranquilizou o ritmo de tudo naquela tarde quente, amainou minha febre e deu colo aos calafrios que eu estava sentindo, em meio a tantas outras sensações de insegurança, solidão, medo, vergonha… O que fez Letícia me eleger como interlocutora eu jamais vou saber. O que restou em mim foi perceber que eu só estava conversando com aquela mulher tão doce e somente conheci as mariposas monarcas porque assim como elas eu saí da rigidez do meu lugar e também cheguei ao México. Letícia e eu, nos decifrando mutuamente, refletíamos que para pessoas como nós é mais confortável ser árvore, mas fazemos grandes descobertas e nos inflamos de vida quando ousamos ser mariposas.

Mariposa Monarca, (licença creative commons)

Vigiai

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Antes que o tempo reclame e se assanhe
Antes que a vida chame e lhe apanhe
Perpetre em ti seu próprio amor
Conserve ali o som da flor.

Antes que o olho atinja e corrija
Antes que a boca apele ou maldiga
Relembre em ti a alma em paz
Entenda, enfim, a luz que jaz.

Antes que o grito revide e convide
Antes que a dor migre e atire
Perceba em ti primor
Seja de si senhor.

Você mesma

Seja você mesma
Desde que não se exalte
Desde que não se altere
Desde que não se revolte

Seja você mesma
Desde que não repare
Desde que não grite
Desde que não fale

Seja você mesma
Desde que não seja intensa
Desde que não fique tensa
Desde que não seja imensa

Seja você mesma
Desde que não altere
A energia, o clima, o equilíbrio
Desde que não expresse
As feiúras, as agruras e amarguras
As tensões, as raivas e as paixões

Sempre, sempre
Seja você mesma, você mesma, você mesma.