Você que não é verdade

Você?
Nunca foi de verdade.
Era só o benefício próprio
A salvaguarda do gosto particular
Do interesse íntimo.
Buscou aqui o que queria
E levou fácil acenando para um sorriso meu.
Você nunca foi a verdade que eu desenhava com a minha carência.
Foi um contorno vazio do que parecia ser e jamais foi.
Juntou-se à minha realidade crua e entregue sem defesas.
Desse jeito, fez as cópias que queria e replicou o que eu pensava.
Ganhou todas as vantagens por cortesia.
E então se foi.
Mentindo-se por aí.

Rabisco (para mulheres)

É assim que você se mantém? Sentada, inerte, passiva, imóvel, enquanto as pessoas vêem em você um rascunho disponível? Sem compromisso ou pesar se dedicam a rabiscá-la. Sem cerimônia, riscando um risco que te lesiona, te rasga… Essa permissão eu já dei inúmeras vezes, entregando minha pele sem cerimônia a quem jamais a mereceu. Sendo assim, não dava pra reclamar com ninguém. Eu chorava para mim mesma, em culpa, em arrependimento. É preciso, em algum momento, dar um basta a essa disponibilidade irrestrita, sem filtro. Cuidar do risco que se aproxima, do rabisco dos ensaios das pessoas, zelar pela sua pele. Se for para fazer-se de ensaios riscados, tome o lápis você mesma, rabisque-se e apague-se onde bem entender, mas não dê a outra pessoa o poder de desenhar ao acaso sobre você mesma.

Rabisco, Grace Donati, arte digital, 2023

Bagunça e ordem

Não sei exatamente a partir de quando eu fui deixando de arrumar a minha cama de manhã cedo, de guardar as roupas trocadas antes do banho, de encaixar no lugar certo os objetos de todos os dias. Do mesmo jeito, tudo aqui dentro foi ficando desarrumado, com dobras e desencaixes, tudo amassado, caído, rasgado e torto. Não sei o que se desarranjou antes… se foi a cama ou se foi o peito. Não é muito fácil trilhar a vida com uma profusão de pensamentos bailando num caos, com emoções que nem se apercebem, um coração retalhado. Dá muito trabalho arrumar. É necessário esforço, disciplina, um bom tanto de “fazer mesmo sem querer” quando o que o desejo quer é colar o corpo no sofá, estirar a alma no chão e viver de anestesia. Tenho testado arrumar fora pra ver a organização aqui dentro e o contrário também. Tenho experimentado até tolerar o caos, aceitar que a vida é bagunça e brincar no meio dela, pegar as roupas amassadas e fazer fantasia… figurino pra sair dançando pelas luzes e sombras do dia. Vai ver é assim mesmo que a gente é, apesar de toda a rigidez e controle que possamos querer… bagunça e ordem, desordem que se arruma e se refaz. É ir e vir, é certo e errado… organiza e desarruma, a gente é e não é. E muda assim o tempo todo que se tem. É isso mesmo: a gente é e também não é.

Pinterest, sem identificação de autoria

Cores com vista para o rio OU O Rio Branco

Poderia ser um espelho
Para refletir o que o rio é.
Sendo quem é, o rio se basta.
Poderia ser o branco de um branco sem graça
No muro diante do rio.
Poderia ser só o rio
Sem nada a olhar o rio.
Mas é uma tela de cores
De gente e bicho e céu que vivem por aqui
Brotando do rio
E resistindo a tudo, com ele.
Trabalho de @ude_alc , Robson Duarte (@megart.graffiti), @gnos.am e @thaizis, em @marinameucasooficial, Boa Vista (RR), fotografia de Grace Donati, em 07 de abril de 2023.

Último dia

Hoje foi um dia morno, daqueles que nada acontece, sem graça… que talvez por isso mesmo tenha sido um dia bom, um dia com saúde e em paz, junto aos meus. Um dia ótimo se eu me lembrar do dia difícil que deve ter tido quem sofre tantas agruras e angústias, moléstia, violência ou um coração quebrado. Mas o que agita meus pensamentos neste fim de dia é como eu vou encará-lo quando eu tiver pra mim só um dia a mais. Nenhum a mais para desperdiçar com mesmices ou nada a fazer. A lembrança de hoje ou de outro dia parecido em vazio deverá pesar no meu peito um dia, mesmo que nas horas de agora ele tenha sido só um dia e nada demais.

De Eduardo Bustos Segovia (EUA), técnica mista. Fonte: https://pin.it/7FJjMqK

Sem título

Hoje eu guardei uma aquarela inacabada, fiz pilhas de caixas de dores abaixo e acima da mesa onde eu gosto de colorir, arranjei onde pude pedaços de lembranças tristes, tantas coisas em lugares inadequados, criando desordem e caos visual em minha casa. Arrumei tudo para ficar ainda tudo torto e errado, cheio de pó e veneno, invadindo a paz e o sagrado do meu morar. Os esqueletos e escuridões que atormentam minha serenidade cá dentro agora também se mostram fora no meu chão, nos resquícios trazidos pela carga daquele lugar onde eu abusei de mim mesma e me pus nua à ceia de pessoas tão vis. (Um dia eu luto pelo meu perdão). É uma confusão tão imensa esparramada em meio a lágrimas vertidas e uma desesperança, uma descrença de que possa haver qualquer devir, de um jeito que eu possa tocar, com substância e cheiro bom e luz.