Mariposas Monarcas

“Você reparou nas mariposas amarelas que voavam quando nós chegamos aqui no cenote?”, eu disse que sim, com olhar curioso e atento, entregue à história que viria com a docilidade e a firmeza do timbre espanhol autêntico. “Elas são as mariposas monarcas, são lindas, não são? Minha mãe as adorava! Há santuários de mariposas monarcas aqui, lugares em que elas vivem livres, juntas e formam um espetáculo incrível de se assistir. É algo indescritível, eu gostaria muito que você conhecesse… Minha mãe morreu há um ano e meio e infelizmente eu não consegui levá-la para admirar as mariposas uma última vez. E agora, quando eu as vi aqui foi uma feliz surpresa…”. Letícia, então, fez uma pausa, olhou para a estrada alongada e deserta à nossa frente enquanto ajeitava o corpo na poltrona do ônibus, virou-se novamente para mim e continuou. “Vim fazer essa excursão com a minha família, eu não tirava férias há 13 anos… e então acabo tendo um encontro com as mariposas monarcas! Hoje é um dia feliz.” Depois, ela foi revelando mais algumas informações, dizendo que as mariposas migram do Canadá no outono para passar o inverno no México, voando mais de quatro mil quilômetros. “Não é sempre que elas estão por aqui.” A história tranquilizou o ritmo de tudo naquela tarde quente, amainou minha febre e deu colo aos calafrios que eu estava sentindo, em meio a tantas outras sensações de insegurança, solidão, medo, vergonha… O que fez Letícia me eleger como interlocutora eu jamais vou saber. O que restou em mim foi perceber que eu só estava conversando com aquela mulher tão doce e somente conheci as mariposas monarcas porque assim como elas eu saí da rigidez do meu lugar e também cheguei ao México. Letícia e eu, nos decifrando mutuamente, refletíamos que para pessoas como nós é mais confortável ser árvore, mas fazemos grandes descobertas e nos inflamos de vida quando ousamos ser mariposas.

Mariposa Monarca, (licença creative commons)

Como se ajuda um pássaro a voar

“Não é segurando nas asas que se ajuda um pássaro a voar. O pássaro voa simplesmente porque o deixam ser pássaro […]”

Antes de nascer o mundo, p. 52, de Mia Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2009
Grace Donati, interpretando Rainha Vitoria no espetáculo “O Rei do Show”, da Cia. de Artes Fulvia Goulart, Bauru, SP. Outubro de 2019

Voa

Ao meu amigo André Marques

Voa, pássaro, voa largo
Voa sem medo de voar
Voa sem pressa de chegar
Onde o pouso te espera e te recompensa

Voa, pássaro, toma o céu
Fisga-te da inércia das paragens
Emula-te pela generosa viagem
Que te compraz e te compadece

Voa, pássaro, voa largo
Voa sem medo de voar
Mergulha grande até fugidio, alcançar
Asa amiga, galho farto, azul de mar.

Obra de André Marques, lápis sobre papel de pass-par-tout, 2019

Viva

Viva
Corra o mesmo risco de quem, descalço e infantil, inquieto e febril, ama.
Faça o mesmo riso de quem, entregue e servil, completo e gentil, ama.
Viva a lida fácil de quem, disposto a amar, incerto e feliz, ama.
Como alguém despido de temor e com ardor, ama.
Como além do viço do calor e com fervor, ama.
Com a vida toda em vigor, ama.
Apenas por ser vida
E pelo amor, ama.

Exsudação

Este vômito que escapa dos buracos
E alcança destinos incalculados
Inunda de vazio os becos
Da dignidade insultada.

Este vapor que deixa os poros
E intoxica a fé sem dolo
Arrebata de horror os crentes
Da realidade empenhada.

Este calor que escancara os fatos
E denuncia passados minados
Equilibra de poder os gritos
Da intensidade negada.

Nota sobre a imagem: Digital Vomit” é um projeto continuo de Alberto Seveso, desenvolvido a partir de fotografias atraentes, uma impressora de jato de tinta e técnicas de intervenção que resultam em composições excepcionais. Ler mais em: http://www.zupi.com.br

Link da imagem: http://pin.it/mh7qVVf

O tempo

tempo_pinterest

Um dia, serei amiga do meu tempo
Só farei coisas que o agradam
Cuidarei de sua vida com zelo
Como quem carrega o último copo d´água.

Um dia, viverei o tempo com a economia do cuidado
Com a delicadeza, a gentileza do compromisso
Exercitando o uso consciente do valor
Do que se estima tanto por ser inestimável.

Meu tempo, hoje, não se flete às minhas vontades
Não se dobra ou se contamina
Não me pertence.
E, em seu rigor, manejado pelo vazio
Arrasta-me.

De 20 de agosto de 2014 (postado originalmente em Dezembro de 2015)

Fonte da imagem em Pinterest: https://br.pinterest.com/pin/483222234997411415/visual-search/?x=94&y=129&w=376&h=517