Um pensamento.
Outro.
Mais três e outros quatro.
E mais alguns.
E tantos.
E aqueles também.
Mais cem.
Penso qualquer pensamento
E o que nem se é de pensar
Penso o que se é de fazer
E de ser só de passar
Tudo vira pensar
Nem só o que é lamento
E no que penso e peso
Vira pesamento
Tudo o que penso
De pequeno vira aumento
De um vira um cento
E daí tormento.
sensibilidade
Sem título
De que vale a dor da tentativa?
A que acaso de alegria encerrou?
Vale amar, o mais, a poesia
Ou de nada serve a luz que clareou?
Será que vale o riso na euforia?
A rosa abrindo, ver que você chegou?
Sentir a paz que eu já tive um dia
Lutar a luta de ser quem eu sou?
Nada torto meio sem terminar
Nada em mim se resolve
Nada vive certo e arrumado
Em mim tem uma caixa de cristal velha que foi derrubada
Minhas sutilezas andam a se esgueirar entre cacos
Tenho anestesias correndo pelas veias
E eu só quero de volta todas as minhas sensibilidades.
As sombras de aflições se contorcem sem se nomear
Eu não enxergo, não ouço, não toco
Não alcanço nada do que eu sou.
Eu voo só
Só vou.
Vive em mim o nada torto meio sem terminar.
Ou nem isso
Ou nem é essa que sou.
Sentir em curtas XXXI
Tem uma tosse que me cala a voz e me caleja a sós.
Eu tento não negociar com a biologia dos meus invasores.
Mas me vejo implorando por trégua
Pra voltar ao antes ou ir ao depois.
Sentir em curtas XXX
A vida toda de um jatobá para saber-se pólen.
Celebrada
Minha mãe minha tia minha avó
Minha sogra a vizinha minha irmã
A professora e a enfermeira, minha amiga
A Maria, eu mesma, a outra amiga
A cunhada e a menina a filha
A prima da tia da manicure
A estudante e a recepcionista
A médica e a secretária a faxineira
A bombeira a cobradora a vendedora
A babá da empresária a cozinheira
A presidente a atendente e a dentista
A pesquisadora a jornalista e a bebê
A terapeuta e a médica e a sambista
A antropologista
São pisoteadas e amassadas
Rasgadas e vilipendiadas
Invadidas manchadas
Massacradas torturadas
Esquecidas e abandonadas
Ludibriadas e espancadas
Diminuídas e ignoradas
E cada uma é celebrada
Quando pari menino
Que não se pari sozinho
E um dia vira algoz.

Rabisco (para mulheres)
É assim que você se mantém? Sentada, inerte, passiva, imóvel, enquanto as pessoas vêem em você um rascunho disponível? Sem compromisso ou pesar se dedicam a rabiscá-la. Sem cerimônia, riscando um risco que te lesiona, te rasga… Essa permissão eu já dei inúmeras vezes, entregando minha pele sem cerimônia a quem jamais a mereceu. Sendo assim, não dava pra reclamar com ninguém. Eu chorava para mim mesma, em culpa, em arrependimento. É preciso, em algum momento, dar um basta a essa disponibilidade irrestrita, sem filtro. Cuidar do risco que se aproxima, do rabisco dos ensaios das pessoas, zelar pela sua pele. Se for para fazer-se de ensaios riscados, tome o lápis você mesma, rabisque-se e apague-se onde bem entender, mas não dê a outra pessoa o poder de desenhar ao acaso sobre você mesma.
Cristaizinhos
Se a gente olhar a própria pele bem de perto, ao final do dia, com uma lupa, talvez, é possível encontrar minúsculos cristais de sal, repletos de substâncias, além de água. É o produto do que suamos, de um trabalho silencioso e competente do corpo para regular a temperatura corporal. Nunca entendi porque isso também não acontece com as nossas emoções e pensamentos. Um processo de expelir alguns deles pra gerar um novo equilíbrio, eliminar os excessos. Imagina só, junto com as 373 substâncias nas gotas de suor, teria ao menos cinco pensamentos desprezíveis, duas fantasias infrutíferas, uma ou outra emoção fantasma, que só servem pra tirar tudo do eixo. Daí, na intimidade de um banho refrescante, tudo se desprenderia da nossa pele, em forma de cristaizinhos ganhando a correnteza da água.
Mariposas Monarcas
“Você reparou nas mariposas amarelas que voavam quando nós chegamos aqui no cenote?”, eu disse que sim, com olhar curioso e atento, entregue à história que viria com a docilidade e a firmeza do timbre espanhol autêntico. “Elas são as mariposas monarcas, são lindas, não são? Minha mãe as adorava! Há santuários de mariposas monarcas aqui, lugares em que elas vivem livres, juntas e formam um espetáculo incrível de se assistir. É algo indescritível, eu gostaria muito que você conhecesse… Minha mãe morreu há um ano e meio e infelizmente eu não consegui levá-la para admirar as mariposas uma última vez. E agora, quando eu as vi aqui foi uma feliz surpresa…”. Letícia, então, fez uma pausa, olhou para a estrada alongada e deserta à nossa frente enquanto ajeitava o corpo na poltrona do ônibus, virou-se novamente para mim e continuou. “Vim fazer essa excursão com a minha família, eu não tirava férias há 13 anos… e então acabo tendo um encontro com as mariposas monarcas! Hoje é um dia feliz.” Depois, ela foi revelando mais algumas informações, dizendo que as mariposas migram do Canadá no outono para passar o inverno no México, voando mais de quatro mil quilômetros. “Não é sempre que elas estão por aqui.” A história tranquilizou o ritmo de tudo naquela tarde quente, amainou minha febre e deu colo aos calafrios que eu estava sentindo, em meio a tantas outras sensações de insegurança, solidão, medo, vergonha… O que fez Letícia me eleger como interlocutora eu jamais vou saber. O que restou em mim foi perceber que eu só estava conversando com aquela mulher tão doce e somente conheci as mariposas monarcas porque assim como elas eu saí da rigidez do meu lugar e também cheguei ao México. Letícia e eu, nos decifrando mutuamente, refletíamos que para pessoas como nós é mais confortável ser árvore, mas fazemos grandes descobertas e nos inflamos de vida quando ousamos ser mariposas.

Um silêncio pequeno
Uma molécula de silêncio quase não existe
É uma quase existência
Quase nada
É uma pequenez oculta em si mesma
Que flutua no ar
Pousa numa folha
E repousa para sempre.
