Senti lampejar meus olhos quando, naquela galeria, no Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira (MUNCAB), em Salvador, Bahia, encontrei as telas de Maria Auxiliadora. Eu não as estava procurando, foi uma gratíssima surpresa. A ingenuidade e o cotidiano desprovidos de excessiva medida técnica, e as cores vibrantes me atraíram rápido. Eu ventei até as telas. Que riqueza ver tudo acontecendo o tempo todo, e no mesmo, nada de extraordinário. O cotidiano é o extraordinário para Maria Auxiliadora, as fofocas nas janelas, o flerte, a dança dos casais, o trabalho na roça, as crianças no ir e vir, gente vivendo a vida que tem pra se viver. A artista era filha de artistas escravizados, nasceu em Minas e faleceu em São Paulo, antes de completar quarenta anos, em 1974. Bordava, costurava e pintava, traduzindo em Arte o que via em casa e na vizinhança com os instrumentos que fora ensinada a manejar por sua família. E que maravilha o que foi capaz de fazer. Deveríamos chamá-la poetisa, talvez cordelista visual, pelas narrativas tão vívidas que se encontram em suas obras. Sobre as telas, a gente nota a textura da renda e dos bordados, o volume dos cabelos das mulheres, quase que os minutos que antecederam aquelas histórias fotografadas ali. A gente fica querendo saber mais e daí corre pra outra tela. É um maravilhamento o trabalho poético de Maria Auxiliadora. Eu convido a todos a conhecê-lo! No link do Itaú Cultural, é possível conhecer mais sobre a história desta grande artista brasileira: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoas/2225-maria-auxiliadora
Sem título, óleo sobre eucatex, Maria AuxiliadoraSem título, óleo sobre tela, Maria AuxiliadoraSem título, óleo sobre eucatex, Maria Auxiliadora
Em junho, eu tentei fazer uma fruteira em cerâmica em forma de cúpula, montada com inúmeras peças circulares feitas em acordelado, como aquelas cobrinhas de massinha que fazíamos quando criança, enroladas em si mesmas. Ficaram parecendo aqueles biscoitinhos chamados “fatias húngaras”, uma delícia! Mas não deu certo. Muitas partes se soltaram já na hora de desgrudar a peça do molde, antes mesmo de ser levada ao forno pela Hanna. Desgrudei cada “biscoitinho” e outras peças e os coloquei num pote, guardados… para eu pensar num destino novo, para lhes dar vida em outro projeto, um lugar que funcionasse. Pintei cada um em duas tonalidades diferentes porque biscoitinhos nunca queimam por igual, certo? Eu estava firme no propósito do capricho, e segui. Em julho, decidi que eles enfeitariam uma fruteira nova, plana, ovalada, azul e assim se deu! Desde então, eles vivem sobre a mesa aqui de casa ao lado das frutas. Como eram muitas pecinhas, eu precisava pensar em outro uso, outra peça onde o restante dos biscoitos pudessem morar. Defini que seria um prato de bolo, o meu prato novo de bolo. Fui em frente: criei um prato redondo devidamente adornado no círculo mais externo com os biscoitinhos e fiz uma base para lhe dar altura, altivez. Colamos, eu e Hanna, o prato sobre a base e parei uns segundos olhando aquele projeto, orgulhosa do feito, do reuso dos bicoitinhos, do meu trabalho, e do novo caminho que eu tinha encontrado para eles. Saí do ateliê confiante e carregando outras peças prontas com aquela sensação orgulhosa da criadora carregando a criação. Quando eu retornei ao ateliê, esperançosa pela peça pronta, claro, me deparei com o prato torno, como se estivesse amolecido, derretendo. Os biscoitos intactos! Me sentei, vidrada no prato e passei a acariciá-lo, sorrindo. Acho que tanto para perceber melhor o que aquele formato era ou como se chegou nele como para refletir sobre um possível conserto. Também para acalentar e acolher… não sei bem o que. Eu, que sempre encontro um jeito de arrumar, ajustar, consertar qualquer coisa, olhava para o prato e absolutamente nada me vinha à mente. “Se não for um prato de bolo, o que pode ser?” O prato era um prato, não deixou de ser prato por ser um prato torto, com ondulações. O objeto constituído ali estava. Ele estava bem, sem preocupação por ser como era. Eu estava inquieta, lidando com as minhas expectativas frustadas, mas encantada ao mesmo tempo. Ser reto era o que eu queria para ele, mas não foi assim que ocorreu. Não demorou muito para eu dizer que eu ficaria com ele de qualquer forma, não o quebraria, não o dispensaria. Ao chegar em casa, eu o desembrulhei dos jornais e o coloquei sobre a mesa, sorrindo. Eu me sentei e fiquei ali, com o tempo parado, olhando para ele. Ao lado dele, um cacho de bananas na fruteira. Eu coloquei as bananas sobre ele e ficou perfeito!! Meu prato de bolo tem a curvatura perfeita para acomodar bananas, em sua forma curvilínea tão orgânica. Gargalhei, sem censura. “Certo, você quer ser um prato de bananas. Entendi”.
É um pouco do que manusear argila e transformá-la em cerâmica nos ensina: ela vive, sobrevive e se transforma inadvertidamente pelo que os estímulos da natureza definirem e não somente pelo seu desejo ou plano. Esperar um resultado específico, rigidamente, é ingênuo. Cerâmica tem sim muito de ciência, mas é pela arte que a gente se encontra. Por mais que eu a molde, é ela que me modifica.
Peça em cerâmica feita com técnica de placa, adornada com peças menores no acordelado, sob base circular em cerâmica, de Grace DonatiFoto da peça em cerâmica acomodando um cacho de bananas.
É assim que você se mantém? Sentada, inerte, passiva, imóvel, enquanto as pessoas vêem em você um rascunho disponível? Sem compromisso ou pesar se dedicam a rabiscá-la. Sem cerimônia, riscando um risco que te lesiona, te rasga… Essa permissão eu já dei inúmeras vezes, entregando minha pele sem cerimônia a quem jamais a mereceu. Sendo assim, não dava pra reclamar com ninguém. Eu chorava para mim mesma, em culpa, em arrependimento. É preciso, em algum momento, dar um basta a essa disponibilidade irrestrita, sem filtro. Cuidar do risco que se aproxima, do rabisco dos ensaios das pessoas, zelar pela sua pele. Se for para fazer-se de ensaios riscados, tome o lápis você mesma, rabisque-se e apague-se onde bem entender, mas não dê a outra pessoa o poder de desenhar ao acaso sobre você mesma.
Eu tenho uma pasta pública no Pinterest intitulada Urbanidades. Ela reúne imagens incríveis, às vezes engraçadas, às vezes sensíveis, provocadoras, cheias de crítica, cor e poesia. Sou encantada pelo modo como as pessoas podem interferir no espaço urbano, provocando reflexões e espalhando beleza. O belo cuida da alma! Eu fiz uma seleção para compartilhar este olhar por aqui:
NOTA: Todas as imagens foram encontradas no Pinterest, considerando a alta taxa de compartilhamento das imagens, não foi possível fazer a atribuição de créditos com segurança. Agradeço qualquer contribuição para a citação correta de autoria das imagens fotográficas.