O tórax sobe e desce
Lento e ritmado
Eu descanso meus olhos
Nesse movimento
De vida
De resistência
Que se mantém sob a coberta quente
No ambiente hostil
Velo o sono
E minha esperança forte
Na força da guerreira
Pequena e abatida
Insistente
Sustento meu alerta
Na sua respiração
Silenciosa
Às vezes na tosse
Às vezes na inquietação
Há um fio de vida
Há vários fios de vida
São eles firmes
Fortes
E atentos
Irão movê-la da cama dura
Para flutuar nesse ar
Que nos oprime
Desde sempre.
dor
Oco
Se pudesse, ela dobraria cada segmento do seu corpo para escondê-los no buraco aberto em seu peito.
Naquele oco sem fundo, interminável, que se fizera marca nova da vida que escolheu seguir.
Os pés tortos, os joelhos apertados, as pernas contra o vazio contorciam o desejo de menos dor.
Para domar sua alma chorosa
Sequiosa de paz
E calor.
Abusada
Qual nome dar à contingência em que baixamos a guarda irresponsavelmente, expondo-nos a agressões e vilipêndios, senão abuso? O abuso do outro autorizado por nós mesmas. Quase soando como um convite… Os outros, enforcados pelo egoísmo de ser quem são, não se alertam para a necessidade do trato gentil e afável. Angustiados em estarem tão poucos ou apequenados, nos encontram atirando-se sobre nós. Assim, somos aniquilados. Às vezes em doses divididas ao passar dos dias, outras vezes, de uma força só.
Desde a última semana fui invadida a partir de muitas frestas desguarnecidas e estou imersa na sensação de abuso, notando-me ao mesmo tempo, com profunda raiva de mim mesma por ter permitido. Eu consenti que determinassem como eu usaria o meu tempo, permiti-me estar com pessoas doentes e que me adoeceram intensa profundamente, me causando dor. Fiz coisas de um jeito torto, no improviso irresponsável, ouvi piadas sobre minhas fragilidades, fui enganada flagrantemente, fui beijada por uma pessoa vil, vi rasgarem minhas roupas por descuido e quebrarem lembranças por desmazelo.
Toda relação humana é potencialmente traumática. Pender a balança para a possibilidade do não-traumático depende de alta vigilância, um espírito alerta atento às ameaças, aos movimentos fortuitos. É preciso sensibilidade canina e presença para identificar quem quer lhe roubar tempo, afeto, dedicação, pedaços físicos… Fico com a impressão de que poetas não sabem se defender, cuidar do próprio espaço e de si e acho que eu estava poeta por estes dias aí. Talvez por toda a vida. Assisti passiva a todas as ofensas silenciosas e quase imperceptíveis que me atingiram e nada fiz. Eu sorri, eximi as pessoas de responsabilidade, toquei os dias e agora me encontro no chão de uma auto-piedade que é infrutífera, quase vergonhosa. Enraivecida, furiosa com minha programação infantil de aceitar tudo, todos, de qualquer jeito, a qualquer hora, o que vier, aquiescendo o que o outro deseja para si, entregando de mim qualquer coisa. Tenho ódio desse padrão que jamais irá se esvanecer, de não saber manter as portas e as janelas fechadas quando eu quero e de dizer basta, não, chega. Eu hoje me descubro mais uma vez como a minha própria e mais cruel abusadora. Os outros só fazem o que eu permito. E por isso, hoje, e talvez para sempre, essa raiva dormirá comigo.

Vazia
Vazia de tempo
Sem vida
Sem nenhuma cor.
O tempo que nunca fica
Que eu nunca toco
Passa fugaz, num suspiro…
Eu vi chegando
E ele quase ficou.
O tempo veio e foi roubado
E eu fiquei no chão assistindo
Sem forças
Sem fôlego
Sem espaço
Sem esperança.

Sem título
Hoje eu guardei uma aquarela inacabada, fiz pilhas de caixas de dores abaixo e acima da mesa onde eu gosto de colorir, arranjei onde pude pedaços de lembranças tristes, tantas coisas em lugares inadequados, criando desordem e caos visual em minha casa. Arrumei tudo para ficar ainda tudo torto e errado, cheio de pó e veneno, invadindo a paz e o sagrado do meu morar. Os esqueletos e escuridões que atormentam minha serenidade cá dentro agora também se mostram fora no meu chão, nos resquícios trazidos pela carga daquele lugar onde eu abusei de mim mesma e me pus nua à ceia de pessoas tão vis. (Um dia eu luto pelo meu perdão). É uma confusão tão imensa esparramada em meio a lágrimas vertidas e uma desesperança, uma descrença de que possa haver qualquer devir, de um jeito que eu possa tocar, com substância e cheiro bom e luz.
Mundo nosso, nosso orgulho
O mundo não tem mais graça.
Não tem mais segredo
Não tem mais silêncio
Não tem mais respeito.
É só um entojado enjoado embolado
De canibais e vermes.
O que não é, é espaço vazio
Que flui pelas intermitências e foge de si mesmo
Com medo de se ver no resto
E de aumentar a massa que só fermenta e cresce.
O mundo já é completamente sem graça.
É aquela festa de gente bêbada tombada ao chão.
Desistente.
É o cheiro da mata queimada.
O crime anistiado.
A vida alheia tomada em comentário prosaico
Pra não se falar de si.
Da sua própria e íntima sujeira.
O mundo não tem nada de graça.
Tudo custa a alma pra quem tem
A escassez de quem não se tem.
Esse nada apático e inválido.
Custa o olho da cara.
Custa o tempo da poesia que eu não faço
E daquela música que me é honesta.
O mundo não tem graça nem é sério.
É o descaso curtindo a desgraça.
É a cada dia um despautério.

Embora
Pra frente
Em frente
Caminhando devagar
E tanto
Pra sempre
Que se olha agora
Pra frente
E sem olhar pra trás
Com a luz em mente
Nem que se ressente
É pra sempre agora
E é pra frente que se anda
E se vai embora
E se apaga
O que se desenhou atrás
Olhos altos naquela luz da estrela
Pedindo intenso a proteção da Aurora
Mesmo que chora
Caminha os passos para frente agora
O que passou
Se esquece em outra hora
É pra sempre que se vai embora.
Segredada
O que fizeste com tua voz fraca?
Segredada no peito
Selada e vermelha
Sem qualquer efeito...
Com que ânimo arrancou a palavra
Do perfeito esconderijo
E a pendurou enfeitando
A mudez?
A elegância de só ouvir
E nada falar
A identidade inviolável
Quieta e oprimida
De viver sem ar.

Marcílio
Agora ele vive na memória
Não mais nas manias repetidas
Não mais no silêncio compartilhado
Não mais no chamado pela menina.
Agora ele descansa eterno
Não mais na cama ou no leito
Não mais em fuga ou com medo
Não mais pedindo sossego.
Agora ele está só por ele
Não mais pelos peixes ou pássaros
Não mais pela lida e a esposa amada
Não mais pelos filhos ou qualquer outro laço.
Agora ele é aquela estrela que ilumina
A que no alto da noite mais brilha
Que vive em nós e por onde for
Que cuida, indica, ampara e vigia.
Em homenagem ao meu sogro, homem de caráter forte, honesto, generoso e benevolente que deixou esta existência no dia 23 de outubro.
Morrerei
Este ano morrerei
Sonolenta, jamais acordarei
Minhas alegrias anestesiadas
Seguirão em memória curta e frágil.
Este ano morrerei
Para calar qualquer dor e amor.
(…)
