Não é possível que eu sinta esta dor, sem rasgar em mim as memórias de outras dores e me encolher na lamúria ainda maior. Ela se instala lenta e sutilmente, sem razão ou aviso. Mas eu me lembro das dores passadas e de como eram antes de ser… e então registro o prenúncio de alguma dor que está no amanhã.
dor
Dor
Antes a dor do corpo que da alma
A fé cega que a busca incerta
A certeza posta no cuidado repetido
Porque é de esperança no dia melhor que a gente vive
E é certo que amanhã ele virá.
Invasão

Arte de Kathrin Honesta
Você invade
Eu invadida
Você acoa
Eu acoada
Você grita
E eu calada
Na violência
Violentada.
Você atinge
Eu atingida
Você condena
Eu condenada
Você agride
Eu agredida
Você sangra
Eu maculada.
Oco sem fundo

Se pudesse, ela dobraria cada segmento do seu corpo para escondê-los no buraco aberto em seu peito.
Naquele oco sem fundo, interminável, que se fizera marca nova da vida que escolheu seguir.
Os pés tortos, os joelhos apertados, as pernas contra o vazio contorciam o desejo de menos dor.
Para domar sua alma chorosa
Sequiosa de paz
E calor.
Celebrada dor
Acidentada
A memória da pétala e da cor
De séculos e séculos e séculos de amor
De manias, de vícios, de vazios e dor
Algemada
Flagelada
Celebrada
Dor.
Permita-se a dor

Há tempos tenho refletido sobre a cultura da felicidade que percorre nossas ruas, põe em nossas gargantas uma válvula que impede o extravasamento da dor e em nossa face, o brilho opaco do sorriso planejado. O resultado é um caos interno que nos desorganiza e irrompe em males perversos.
Já é possível classificar o comportamento como um ato reflexo, habilidade instalada precocemente e repetida, repetida e generalizada, consistentemente automatizada. Há um acordo tácito e amargo assumido entre quem sofre a dor e quem a assiste gritar. De um lado, a pessoa se lança a uma exagerada busca de controle e de outro, todo o entorno se mobiliza para que este plano tenha sucesso, e que, sendo assim, a dor desapareça, rápida e silenciosamente. O incoerente neste contexto é que dores não desaparecem assim… ao sabor do gosto de alguém, ou para se manter intacto o cenário da cozinha iluminada com cheiro de pão quente e margarina. É da natureza da dor doer. É um benefício biológico sentir a dor, expressá-la e buscar amparo. Dores não desaparecem assim… A criança que corta o pé sente dor. O menino que cai da bicicleta sente dor. A adolescente magoada pela amiga sente dor. O velho que perde sua esposa sente dor. Dói nascer. Dói crescer. Dói perder e… talvez doa morrer. A cada um cabe a sua dor e a todos nós cabe o respeito, o abraço longo, o peito voluntário, o colo ao lamento. Não cabe a quem assiste a dor sufocá-la, calar o grito ou estancar sua vida. Não nos cabe exigir a força que se esvai ou subestimar a ferida. Porque a cada um de nós cabe um tanto de dor, e a todos nós cabe, irrestritamente, o amor.
Notas para um algoz
Arranca de mim este riso
Como se estirpe da carne o mal
Na mesma fúria
Com luz teatral
Em pleno gozo
Sem fim, afinal.
Escancara de vez esta ira
Como exibe na face o fel
No mesmo grito
Com voz cruel
Em regozijo
À guerra, fiel.
Arrebenta num golpe a ferida
Como exime de si a dor
Na mesma injúria
Com veste de amor
Em um assalto
Meu sangue ao feitor.
Skinless
Busca
Cristais meus
Dores minhas que caem
Vida minha que sai
Busque em ti fado amargo
Cores tuas que traem
Flores nuas que falem
Vida minha que vai
Liberte de ti medo que te distrai
Peso louco se esvai
Riso pouco aceitai
Contemple na fé
Fontes bentas de mais
Pontes feitas de vais
Contas poucas de mas.
A escolhida
Muitos universos no dia
Poucas ilusões de alegria
A magia
Minha cria
Sumia.
Muitos pedaços sem cor
Pouca poeira de amor
O temor
Meu sabor
Crescia.
Muitos pecados em vãos
Poucas verdades nas mãos
A razão
Meu vilão
Ardia.
Muitos pesares em fila
Poucas sementes de vida
A escolhida
Intranquila
Morria.
